Meti a chave à porta até que a fechadura velha me cedesse passagem. Cada porta tem seu barulho a abrir e aquela era certamente a música repetida de memórias bonitas, o barulho que o sol faria se soubesse falar. Pousei as malas meio atrapalhada e em pouco apreciei a sala de estar. Atravessei a divisão escura e rompi o silêncio do bairro içando a persiana fechada desde a primavera, fazendo pássaros que voavam perto da janela baterem as asas com mais força e para mais longe.

Era tarde, mas não fim de tarde, que no inverno isso pouco existe. Não havia mais céu em tons pastel, mas o mar carregado de azul petróleo triste emancipava-se do céu cinzento sem nuvens. Se há um ano, ao atravessar a janela, respirava como se em breve voltasse para baixo de água, agora deitava a água toda fora para respirar a plenos pulmões. Ainda cheirava a mar e a espuma salgada arranhava-me as pernas e ardia na pele, como se de um primeiro mergulho se tratasse.

Este não era o meu primeiro mergulho. Eu já aqui tinha estado e não foi assim há tanto tempo. Nada do que nos tire a liberdade deveria por alguma vez ou circunstância ser sinónimo de conforto, mas estranhamente, havia algo cómodo em estar na varanda de novo com o mar de frente e a dança na ponta da vontade das mãos.

Os pensamentos davam voltas aos metros quadrados do quinto andar tão rapidamente que me faziam esquecer a pressa que tinha de a ver. Olhei, de relance, focando em todas as varandas a minha atenção, procurando a bailarina da pele da cor do café mais cremoso. Procurei em minutos o que me pareceram dias e pouco queria acreditar na verdade.

Não a vi, não a encontrei. A bailarina não compareceu ao encontro que lhe pedia em segredo e optou por ficar mais resguardada em casa. Eu compreendia, na verdade. Agora não havia tanto sol e o vento era frio. Esperava olhá-la para saber que poderíamos voltar a dançar juntas, ainda que o mundo insistisse tanto em não ouvir a música até ao fim.

Lá em baixo, um senhor vestido de amarelo forte reclama alto e sinto-lhe o tabaco a tapar a voz. É o único homem num raio de quilómetros que pisa asfalto e sai-lhe a raiva pela boca mais alto que o barulho do mar. Limpa meia dúzia de cravos vermelhos que deixaram no chão da avenida e que vão sendo pisados ora por carros, ora por cães, ora por gente. A impotência assola-me e fico quietinha à espera que passe…tenho aprendido nos últimos dias a lidar melhor com ela. Sento-me primeiro nos azulejos e depois, lentamente, vou deixando as costas sentirem o frio do chão. Do céu cinzento sem tons, rasga sem querer um raio de luz forte. O sol afinal sabe falar e decidiu falar comigo. Ainda deitada no chão da varanda, ponho as pernas para cima e finjo que ando numa bicicleta mágica. Pedalo e pedalo enquanto as ondas se sucedem. Detém-me a pergunta e enquanto o sol não se cala e eu pedalo, penso: Será possível que alguém, em alguma varanda, da cidade ou do mundo, me veja e queira fugir de bicicleta comigo também?

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