Passado o rescaldo destas eleições autárquicas, resta-nos apenas assumir os resultados e reconhecer o prenúncio que, já antes do ato eleitoral, era garantido. Em Crónica de uma morte anunciada, de García Márquez, todos sabiam que Santiago Nasar ia morrer naquela madrugada. Neste caso, antes do dia 12 de outubro, estava já anunciada a morte da autarquia, assim como da cidade de Elvas e de todos os elvenses.

O povo foi chamado às urnas, a eleger os três órgãos que compõem a autarquia, e este não podia estar mais dividido. No anterior mandato, a vitória foi atribuída ao centro-esquerda, tendo a maioria dos assentos sido atribuída ao Movimento Cívico por Elvas (MCPE) e ao Partido Socialista (PS), com três mandatos para cada partido. Quatro anos depois, o cenário muda radicalmente e a extrema-direita ganha uma enorme representatividade na vontade dos elvenses, ocupando o 2.º lugar nos votos para a Câmara Municipal e o 1.º lugar naqueles que diziam respeito à Assembleia Municipal. Contas feitas, dessumimos, então, que a vontade do povo não é una, uma vez que optou por outorgar o mesmo número de mandatos ao MCPE, ao Chega e ao PS, o que configura uma Câmara Municipal mais dividida do que nunca.

Nesse sentido, o que podemos esperar para a nossa cidade? Há possibilidade de coligações, como se verificou no mandato anterior, ou está cada um por si? Os sete que foram eleitos aceitarão os cargos que lhes forem atribuídos?

Creio que antes de responder a todas estas questões, é importante olhar para cada eleito/candidato e para o partido que representa, assim como para aquilo que foi a campanha eleitoral de cada um e o que tem para oferecer. Ressalvo, desde já, que os próximos argumentos não terão em conta qualquer aspeto pessoal, nem serão um ataque à pessoa em causa; não conheço qualquer um deles pessoalmente, pelo que me limitarei a escrutiná-los com base no seu programa, na sua campanha e, no caso de Rondão Almeida e Nuno Mocinha, nos seus mandatos anteriores.

Comecemos pelos veteranos deste jogo, aqueles que efetivamente fizeram com que as suas listas parecessem aquela caderneta que está quase completa, mas que tem lá aqueles cromos repetidos, que nem para troca conseguimos usá-los.

José Rondão Almeida concorreu pela primeira vez à Câmara Municipal de Elvas em 1993 e foi presidente da câmara até 2013, devido à aprovação da lei que limitava o número de mandatos consecutivos numa câmara municipal. No entanto, a derrocada dada pela legislação, pelo Partido Socialista e pelo seu sucessor não foram suficientes para o afastar da autarquia de Elvas, tendo assumido o cargo de vereador nos executivos de 2013-2017 e de 2017-2021, aqui já como independente. E em 2021 volta a assumir funções como autarca. Contas feitas, já lá vão mais de 30 anos. E, afinal, o que é que motiva um homem a manter este estilo de vida durante 30 anos? 

O comendador Rondão Almeida já conta com 82 anos de idade, a caminho dos 83. É o autarca em funções mais velho na História da política portuguesa. E, por muito que argumente que se sente jovem e que está bem de saúde, a verdade é que também é importante reconhecer quando já chegou o nosso momento, reconhecer que já fizemos o que estava ao nosso alcance, que demos o nosso melhor e que deixámos a nossa marca. E indiscutivelmente deixou-a, é notório. Contudo, viver em democracia implica isso mesmo, a regeneração política, a continuidade de um trabalho por outro, a manutenção do debate – por essa mesma razão se legislou que tinha de haver um número máximo de mandatos consecutivos.

Mas a síndrome Rainha Victória vai para além disto. Ao longo da campanha eleitoral (realizada em grande parte no Facebook), assistimos ao envolvimento do Movimento Cívico por Elvas nas mais variadas polémicas. Contudo, sublinhemos dois aspetos, entre os vários, que a meu ver foram os mais graves. Primeiramente, o Movimento é notificado pela Comissão Nacional de Eleições para retirar a propaganda eleitoral afixada numa rua do centro histórico (denotemos que a proibição desta prática foi aprovada pelo próprio líder do partido) – que nunca chegou a sair – assim como para a eliminação de todo o conteúdo informativo, com carácter propagandístico, dos órgãos e estruturas de comunicação da Câmara Municipal de Elvas. O segundo momento está relacionado com a exclusão, por parte do Tribunal de Elvas e posteriormente confirmada pelo Tribunal Constitucional, da lista do MCPE à Assembleia de Freguesia de Assunção, Ajuda, Salvador e Santo Ildefonso, por não cumprir a lei da paridade. O mais decadente nesta situação foi o que aconteceu a posteriori, quando vimos um vídeo publicado na página de Facebook do candidato a incitar ao voto em branco e, mais grave ainda, ler nos comentários dessa mesma publicação o apelo por parte da candidata à Assembleia Municipal (órgão máximo de uma autarquia) ao voto nulo. Curiosamente, nesta freguesia foram contabilizados 265 votos em branco e 175 votos nulos. Este tipo de voto de protesto tem de vir do próprio eleitor e não me parece propriamente muito democrático encorajar este tipo de atitudes, principalmente no contexto dúbio em que nos encontrávamos.

Mudemos agora o foco por uns instantes. Em 2013, Nuno Mocinha passa de n.º 2 a cabeça de lista do Partido Socialista e alcança a presidência. Em 2013, o Partido Socialista consegue seis mandatos, no ano de 2017, mantém a maioria absoluta com quatro assentos, dando-se a reviravolta em 2021 quando consegue três mandatos, o mesmo número que o Movimento Cívico por Elvas (e o mesmo que obteve em 2017).

O percurso de Mocinha desde 2013 até 2021 teve os seus altos e baixos. Algo que sempre reconheço nos órgãos governativos dos anos de 2020 e de 2021 é a forma como geriram a situação pandémica que nos assaltou de forma inesperada. E nisso, tanto António Costa como Nuno Mocinha fizeram uma gestão exemplar da situação. Acontece que o candidato pelo PS assumiu a derrota com imensa facilidade. Atenção, é legítimo que Mocinha tenha abdicado do cargo de vereador em 2021, terá tido as suas razões seguramente, mas onde esteve o candidato entre 2022 e 2024? Justamente, um dos aspetos de que a população elvense mais se queixava era da aparente frieza do político, da sua distância e cara fechada. Novamente, é legítimo que assim o seja, no entanto, é necessário ter em conta que, num município como o nosso, onde a população é altamente envelhecida, esse tipo de perfil pode não ser levado com bom grado. Vivemos numa sociedade que vive de aparências e do supérfluo, que gosta de receber atenção dos demais, e precisamente sentiram que Nuno Mocinha não estava tão próximo deles como gostariam. E creio que, sendo cabeça de líder de um partido, não é viável desaparecer durante três anos, após renunciar o cargo de vereador, e aparecer no próprio ano das eleições só porque é candidato. Aliás, esta presença constante teria sido mais importante ainda, tendo em conta a credibilidade e a confiança política que o PS tem vindo a perder nos últimos tempos, principalmente num concelho em que os votos cavalgavam a alta velocidade em direção ao Chega.

Quem também já era conhecido entre os elvenses e que se estreou na corrida à Câmara foram José Eurico Malhado, pelo partido Chega, e Margarida Paiva, pela coligação Aliança Democrática (AD).

O candidato do Chega nem precisava de se esforçar muito na sua campanha, uma vez que já tinha garantido o voto de todos aqueles que, ao olhar para o seu cartaz, babar-se-iam ao ver a imagem do seu todo-poderoso André Ventura. E isto leva-nos a questionar: terá sido um voto baseado em que? É que sabemos que ao falar em Chega se pensa automaticamente no líder do partido, então o que refletem estes 2.783 votos para Malhado? Terão os cidadãos conseguido distanciar esta propaganda ilusória? Saberão ter distinguido autárquicas de legislativas? Ainda assim, esta campanha garantiu ao candidato a presidente da câmara de Elvas um destaque televisivo, coisa que não está ao alcance de qualquer um. Em contrapartida, o que está ao alcance de qualquer um é mesmo integrar o Chega e apresentar-se numa lista deste partido para um determinado órgão.

Mas não percamos o foco. A verdade é que o candidato que alcançou o segundo lugar protagonizou alguns momentos de discórdia nas redes sociais. E este fator é relevante por uma simples razão: os dois partidos mais votados nestas eleições foram aqueles que “mais espetáculo” deram nas plataformas digitais. E isto tanto se aplica ao Chega como ao Movimento, já que foram aqueles cujos candidatos alimentaram momentos mais efusivos nas redes sociais. Ora, parece que os vários sinais de alerta sobre as formas como determinados políticos utilizam estes meios para fazer propaganda não chegou a Elvas. Quiçá, o eleitorado elvense não saiba que a informação fidedigna e de qualidade não vem estampada no Facebook, da mesma forma que ter um cartaz, no qual aparece André Ventura, não significa que este se esteja a candidatar ao que quer que for; pelo contrário, apenas aproveita a sua popularidade entre os raivosos e odiosos e sempre ajuda a começar uma exaustiva campanha para as presidenciais.

De maneira a encerrar este leque, Margarida Paiva apresentou-se pelo partido do momento em Portugal, mas que não o tem sido em Elvas, já que a mudança de espetro foi de tal forma abrupta, que passou do centro-esquerda para a extrema-direita numa fração de meses. A AD tentou, efetivamente, mostrar que podia ser a alternativa, a outra face da moeda que ia fazer muito por e para Elvas, mas a verdade é que falhou, ou, pelo menos, não foi suficiente, tendo em conta o quadro em que se inseria. O PSD não ganha a câmara municipal desde 1993 e, depois desse ano, os resultados não superaram o de um mandato. Olhando para os números, o PSD e o CDS-PP, em conjunto, têm alcançado sensivelmente a mesma percentagem de votos, nos últimos anos. 

Algo que tenho a destacar da campanha da AD, assim como na do Partido Socialista, cinge-se na aposta por conteúdos digitais mais trabalhados. É evidente que nem todos dispõem do mesmo tipo de recursos, mas apresentaram algumas das suas medidas de forma clara e desmistificaram uns poucos de temas. Contudo, faltou a presença, a proximidade e a união, fosse dentro do partido como fora dele. E esse tipo de coisas também é sentido pelo eleitorado. Por certo, o eleitorado também identifica a contradição que há entre uma constante crítica feroz aos almoços, convívios, banquetes, entre outros, e uma última semana de campanha com porco no espeto e paella à discrição.

Por fim, mas não menos importante, saudar a candidata da Coligação Democrática Unitária (CDU), Ana Albergaria, sobre a qual não consigo tecer grandes comentários, porque, sinceramente e infelizmente, não acompanhei muito da sua campanha. Não se destacou para aí além, mas desempenhou as suas funções, e confesso que aplaudo a coragem em integrar uma corrida com estes carapaus. No entanto, e não querendo descredibilizar a sua candidatura, Albergaria, ainda que vivendo há 27 anos no concelho de Elvas, parecia não conhecer bem a fundo os problemas da nossa cidade e ao mesmo tempo denotei, paralelamente, um reduzido esforço em conhecer a população e em dar-se a conhecer.

Megafones guardados, votos contados e órgãos por constituir e tomar posse, que podemos retirar de todo este longo e intenso processo? Acima de tudo, creio que os candidatos deveriam ter dedicado maior parte do seu tempo em apresentar e defender os seus programas eleitorais, ao invés de criar polémicas desnecessárias e ataques e perseguições constantes. E o resultado de tudo isto reflete-se no cenário de instabilidade que temos diante de nós. Agora, o presidente eleito Rondão Almeida vem publicamente apelar ao civismo e ao diálogo entre todos, pedindo a troca da camisola política pela camisola de Elvas. Contudo, como se poderão reunir estes sete indivíduos numa mesma sala, sem ter em conta tudo o que aconteceu? Como pode Rondão Almeida solicitar tal fair-play, quando durante toda a sua campanha teceu ataques aos seus adversários e adotou uma postura de vítima de maneira constante? Não se prevê qualquer tipo de acordos, logo, como podemos ambicionar e aspirar alguma prosperidade e progresso com um executivo e uma assembleia municipal mais divididos que nunca? Algumas das esperanças do presidente foram depositadas no Partido Socialista, numa possível aliança como a que foi feita no mandato anterior. Desta forma, já seriam 4 contra 3, mas estarão os eleitos do PS dispostos a uma coligação? Estará o futuro e o progresso da cidade nas suas mãos?

No fundo, estas eleições apenas vieram intensificar uma guerra sem precedentes que já era visível antes da campanha eleitoral. O foco foi sempre o ataque, a descredibilização, a tentativa de mostrar que A era mais válido que B; quis-se correr em direção ao poder e transformar a política num verdadeiro reality show. Eventualmente, poderia dizer que o foco da campanha não foi Elvas, nem os elvenses, no entanto, estaria a conduzir-me a erro, porque, no fundo, era disto que o povo gostava e era isto que o povo queria: ver o circo a arder. E, de certa maneira, podemos dizer que isso acabou por se traduzir nos resultados, pois o espetáculo tem de e deve continuar.

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