Há um momento curioso na viagem do autocarro 744, em Lisboa.
Depois de cruzar avenidas e semáforos, o autocarro entra, sem cerimónia, por dentro do aeroporto. É como se um pedaço de vida comum se infiltrasse num território feito de partidas e de chegadas.
Lá dentro, tudo muda: o ritmo, o ar, a luz. Há malas que percorrem freneticamente o chão, vozes em várias línguas, aquele perfume que cheira a riqueza material, e uma vontade louca de procurar a liberdade.
Eu, do meu lugar junto à janela, observo e penso — com uma serenidade quase teimosa — ainda bem que não preciso de entrar ali para ser livre, viver e ser feliz.
Consigo perceber o fascínio do aeroporto: a magia de partir para descobrir algo novo, a adrenalina de sobrevoar a terra e o mar, a curiosidade de entrar noutro fuso horário. Cada viagem tem um pouco de sonho, e é bom que assim seja. Mas há outra forma de liberdade: a de quem encontra sentido nas pequenas rotas do quotidiano, sem voar para fora.
Penso naqueles que estão sempre a achar que a vida se vive lá fora, ou pelo menos em todos os lados menos onde eles próprios estão. Que parece que a felicidade só mora em países distantes, em cidades que não conhecem, em experiências que ainda não aconteceram. Há beleza nisso, sem dúvida — a busca por novidade, a vontade de se reinventar — mas às vezes parece que perdem o presente, o que já têm à mão, a própria vida que acontece entre uma paragem e outra.
O 744 segue o seu caminho devagar, como quem sabe que a vida também acontece entre paragens terrestres e citadinas. Lá dentro viaja quem vem do trabalho, quem leva o filho à escola, quem regressa de um turno de madrugada, gente que carrega sacos de compras e marmitas.
Quando o autocarro sai do aeroporto e volta à estrada, sente-se uma confirmação coletiva, mas quase impercetível – a do regresso à cidade viva, com trânsito, buzinas e luz artificial.
E eu penso: ainda bem que há quem voe, e ainda bem que eu sigo por aqui. Porque a felicidade, no fim, não mora nas partidas nem nas chegadas.
Não sou contra viajar, gosto de o fazer e arrisco dizer que é um luxo. Sei que explorar o mundo traz tantas vantagens — novas culturas, encontros inesperados, experiências que ampliam horizontes. Não julgo quem precise de bilhetes e de fazer check-in, mas eu contento-me com a janela de um autocarro que passa pelo aeroporto e segue em frente, firme, no chão. Com esta viagem no 744 reaprendi que a vida, mesmo parada num semáforo, continua a avançar.
E quando o motor desacelera junto à minha paragem, sei que não é preciso voar para conhecer a liberdade. Apenas ter chão, tempo e a sensação de que, mesmo sem partir, continuo a seguir viagem.