Sucedem-se em Portugal os casos de médicos com um elevado talento comercial. As ocorrências tornam-se mediáticas essencialmente quando as condutas praticadas resultam em prejuízos para o Estado. É o caso da médica que foi detida recentemente  por suspeita de lesar o erário público em 3 milhões de euros ao receitar indevidamente Ozempic.

Igualmente famosa foi a conduta do dermatologista que cometeu a proeza de embolsar 700.000 € em cirurgias adicionais no Hospital de Santa Maria entre 2021 e 2025, conjuntamente com outros dois médicos que receberam mais de €200.000 nesse mesmo período. As autoridades estão a averiguar os contornos das irregularidades cometidas pelos três clínicos que operavam fora do horário normal de trabalho, em dias de descanso semanal, ou de compensação de feriado.

Não fossem estas elevadas somas um dos fatores da equação e poder-se-ia inferir que estariam a esforçar-se pelos doentes, mitigando os tempos de espera no SNS. Mas não! O motivo foi mais cintilante, embora apenas vantajoso para as respetivas contas bancárias.

Mais incólumes são as práticas comerciais dos médicos que trabalham no privado, onde supostamente só vai quem pode pagar, ficando o Estado a coberto de prejuízos. Aqui, cabe ao utente, ao cidadão ou ao cliente (não sei ao certo como designar quem recorre aos serviços neste setor), arcar com as consequências de condutas pouco abonatórias de quem deveria esforçar-se por atender zelosamente  quem paga no ato. Ou até quem se vê obrigado a pagar antecipadamente.

Evolucionista, otimista e compreensiva que sou, não cabe na minha cabeça tolerante  não ficar incomodada com o que aconteceu a quem me é próximo e se viu obrigado a recorrer aos serviços de uma alegada sumidade da medicina, que receita ciência avançada, mediante o pagamento de valores elevados, sem qualquer possibilidade de os reduzir com a ajuda de um seguro de saúde. É para  quem quer, para quem pode, ou para quem tem de fazer o esforço, por não haver resposta célere da parte do SNS.

A doutora em causa tem consultório num impressionante edifício localizado na Avenida da Liberdade, em Lisboa, e uma agenda com poucos horários por preencher. No acesso à consulta, depois de rodopiarmos através de uma porta giratória, passa-se por um segurança sentado atrás de um balcão de mármore espelhado, com dez metros de comprimento, entra-se num elevador panorâmico até ao segundo piso e procura-se o apartamento C, discretamente identificado com uma placa que sugere ser ali o consultório. Toca-se à campainha, a porta abre-se e entra-se na receção.

Uma senhora que aparenta ter mais de sessenta anos folheia a agenda e olha para o relógio antes de pedir a confirmação do nome do paciente. Mal abrimos a boca para confirmar, é-nos mostrado um TPA – Terminal de Pagamento Automático. A dita senhora não se inibe de pedir que o pagamento seja feito de imediato, porque “tenho de ir almoçar”, dito assim, sem tirar nem pôr, enquanto já tecla uma quantia e avisa que a máquina tem “contactless”.

Acometidos daquela estranha obediência paralisante, própria de quem é apanhado de surpresa, lá se encostou o cartão e se digitou o código, sem nos apercebermos de que o montante era substancialmente superior ao anunciado por telefone no momento da marcação da consulta. Um desbloqueio mental súbito empurrou-me os olhos para o pedaço de papel recortado da máquina, levando-me a reparar na cifra impressa: 135 €.

Piei timidamente: “Desculpe, mas não foi este o valor que me foi dito quando telefonei a marcar a consulta.”

Com uma notável falta de paciência para me aturar, a rececionista contra-atacou: “Foi de certeza. Sou eu que atendo as chamadas e não ia errar na informação.”

Gradualmente a regressar ao meu estado de lucidez normal, retorqui com firmeza: “Garanto-lhe que me falou em 98 euros, não 135.” Desarmada pela minha segurança, meteu travões a fundo. “Espere, então o senhor não vem para a consulta de sono?”. “Não, não vem” – retorqui. “Ah, então tem razão, são 98 euros. Mas é fácil de resolver. Peçam à doutora que devolva a diferença, que eu tenho de ir almoçar. Sentem-se na sala de espera. A doutora está com um paciente e já chama”, ordenou. Lá fomos, obedientes e atordoados, mas suficientemente despertos para desconfiar que os mimos e os agrados não iam ficar por ali.

Meia hora depois da hora marcada, com uma vontade crescente de sair dali para fora, contrariada pela consciência dos 98 euros que já lá cantavam, ouvimos finalmente a voz da médica a chamar. Entrámos num consultório minimalista,  integralmente branco: paredes, secretária, cadeiras e a bata imaculada da doutora, que se levantou para nos cumprimentar.

Na consulta nada de relevante a assinalar. Da triagem, aos conselhos orientadores e à prescrição decorreu uma hora. Mais dois minutos para o reembolso do montante cobrado indevidamente. Marcação de nova consulta para sensivelmente dois meses depois.

O dia chegou. Comprometida em voltar a acompanhar o paciente, por motivos de trabalho cheguei 5 minutos depois da hora marcada. Após vencer o circuito de acesso ao consultório e de passar pela cobradora do TPA, que me autorizou a entrar para  sala de espera contígua ao gabinete da médica, ainda não tinham decorrido cinco minutos quando a porta se abriu.

A doutora, com os seu olhar azul saliente, dirigiu-se a mim, para fazer a súmula da sumária consulta, despachada em cerca de 15 minutos. Depois de ter avisado, com a maior desfaçatez, à pessoa que estava ali a ser consultada mediante o pagamento de 98 euros: “hoje temos de acelerar porque tenho ali mais pessoas à espera. Tenho ali uma paciente que é doente”. Como se quem lá fosse não estivesse doente. Pelo menos mentalmente perturbado para se sujeitar a este tratamento a dar para o humorístico, sem ter graça nenhuma. Pelos 98 euros pagos e pela procura de uma resposta clínica a um problema de saúde.

O que daqui resulta, é a recusa da pessoa em questão em lá voltar. É claro que se eu tivesse chegado atempadamente, a consulta nem se teria realizado. Perante o anúncio de despachar o assunto, teríamos agradecido educadamente e poupado os 98 euros (desta vez pagos no fim), e o incómodo de reportar a conduta pouco ética à Ordem dos Médicos e ao Ministério da Saúde. Os próximos passos a dar!

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