A vida é o bem mais precioso que temos. Isso, pelo menos, dizem. Porém, não são apenas as pessoas, “Todo o indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.”, di-lo o Artigo 3.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Se é conforme se descreve, isto é, um direito universal e no qual todos depositam uma mensurada significância (principalmente a cultura ocidental), então porquê menosprezá-la ou utilizá-la como arma de arremesso para justificar uma causa? Tornou-se a vida um instrumento banalizado com o qual podemos atingir mais facilmente o nosso fim?

Nos últimos meses, a imprensa tem trazido para nossas casas notícias nas quais nos mostram como a vida é fugaz. A efemeridade de um composto que se evapora numa questão de segundos e que arrasta consigo tantos outros, que na sua ausência não encontram rumo.

A 23 de agosto, as televisões enchem-se com as imagens de Manuel Trindade, que, aos 22 anos, perde a vida após colhido por um touro, numa corrida, no Campo Pequeno. Mais tarde, a 10 de setembro, navegam pela internet milhares de vídeos, que expõem o momento exato em que o ativista político norte-americano Charlie Kirk é assassinado com um tiro no pescoço, durante um evento no campus universitário de Utah. Restar-me-ia falar de Gaza, e será evidentemente incluído neste artigo, pois apesar de ter falado deste tema no meu último texto, tendo-se à data contabilizado milhares de mortes, a verdade é que continuamos a assistir a um genocídio sem fim à vista. Vamos por partes.

Manuel Trindade não faleceu no momento imediato em que embateu contra as tábuas da arena do Campo Pequeno, mas o traumatismo e a morte cerebral diagnosticada levaram os médicos a declarar a sua morte na manhã do dia 23. A comunidade taurina lamentou a sua morte e expôs como o meio tauromáquico tinha empobrecido com esta perda. Por outro lado, aqueles que abominam esta prática alertavam para os perigos daquela que é considerada uma das atividades culturais a preservar, e, num campo mais extremista, havia quem celebrasse esta morte cruel. É legítimo ser-se a favor das touradas ou contra, como também temos a possibilidade de frequentar o evento ou não, e, claramente, de argumentar a favor ou contra a sua permanência enquanto “tradição cultural a conservar”.

Pessoalmente, não consumo corridas de touros nem qualquer uma das suas ramificações e não defendo o seu prolongamento, contudo, jamais me aproveitarei da vida humana (da mesma forma que abomino o aproveitamento da vida animal para este tipo de fins) para justificar e defender as minhas convicções. Podemos reconhecer o perigo iminente inerente para os forcados, mas não por isso devemos celebrá-lo quando este se materializa ou dizer “é bem feito!”. Supõem que aqueles que se dedicam a esta atividade não estão conscientes dos riscos que enfrentam? Poder-se-á dizer que quem corre por gosto não se
cansa? Com isto, não estou a dizer “sim aos toiros”, estou a dizer “sim ao bom senso”; em qualquer momento devemos sacrificar a vida de alguém e menosprezá-la em prol de uma crença.

Apesar de tudo o que a História nos conta, de todas as revoluções, mudanças de regime e tratados/declarações, parece que a política continua a dividir de forma acérrima e sangrenta aqueles que não se encontram no mesmo lado da bancada. As touradas são um tema político, indubitavelmente, mas a prática e o ativismo políticos são aspetos ainda mais transparentes. Charlie Kirk era um dos maiores apoiantes do Trumpismo e impulsionador do movimento MAGA. Uma vez mais, conhecemos aquilo que Trump quer implementar; podemos discordar, mas por isso é legítimo que quem o apoie perca a vida? E, mais do que isso, é válido instrumentalizar politicamente esta morte?

Inegavelmente, Kirk tinha o dom da retórica e sabia utilizar a palavra a seu favor — relativamente ao conteúdo do discurso, essa conversa já é outra. Mas desempenhava a sua função através do debate, conforme se quer numa boa democracia. No entanto, parece que o poder do povo, subjacente à democracia, divide mais que unifica, e os próprios políticos não ajudam quando o seu intuito imediato é identificar culpados (e, de preferência, da oposição). Donald Trump e todos os seus homólogos políticos de vários países apressadamente atribuíram a responsabilidade do sucedido à esquerda, quando o corpo sem vida do ativista ainda não tinha arrefecido. Ainda assim, não compreendo por que causa tanta surpresa este ato desesperado, já que os espetros se tornam automaticamente culpados quando há um crime desta natureza; e justamente muitos dos que condenavam a utilização das armas aplaudiram este gesto hediondo. E porquê? A vida de Kirk tinha de ser condenada da mesma forma que o seu conteúdo era condenável? Chegamos a um estado democrático semelhante ao do faroeste em que “despachamos” quem não partilha das mesmas ideias que nós?

Poderíamos concluir, então, que já ninguém se pode expressar política e publicamente, que a política se tornou uma arena de gladiadores, na qual podemos perder o duelo (de forma literal) a qualquer momento, que se abandona o debate para dar lugar à força bruta. Viver em democracia pressupõe duas coisas: a primeira assume o confronto de ideias opostas, ou como dizia Rancière “é através do dissenso que se gera o consenso”, e a segunda garante-nos que o que é uma derrota para um hoje, pode ser uma vitória amanhã. Todavia, este trajeto é interrompido pela bala. E reforço uma vez mais, por muito que não nos identificássemos com o conteúdo do discurso de Kirk, a utilização da bala dentro de um debate que se quer democrático nunca será a solução para a sua manutenção e viabilidade, se não a razão do seu desvirtuamento e decadência. Afinal, há mais radicais que aqueles que pensávamos…

Já vimos como a política se apropria da vida de indivíduos para defender a sua ideologia ou para atacar os seus opositores. Mas não só desta forma se banalizam estes ataques e se ignora a dignidade e a integridade de cada um, uma vez que falta olhar para a forma como a vida de milhares é colocada no espaço público e também ela instrumentalizada para salvaguardar um propósito.

Regressamos a Gaza, onde decorre um já identificado genocídio. No meu artigo anterior, e se este leitor tiver interesse em fazer uma releitura do mesmo, já dava conta desta categorização e de como a vida humana não importava nada no meio das relações diplomáticas. Contudo, o discurso escalou. E escalou porque indigna ver como a apatia se mantém face a tudo aquilo que se diz, escreve e vê. E ainda assim, certos partidos, maioritariamente os da ala direita, são capazes de branquear e normalizar este genocídio, seja porque consideram Israel inocente ou porque os próprios palestinianos não respeitam os direitos humanos; afirmam inclusive que tanto a causa feminista como a causa LGBT se tentam apropriar da causa palestiniana. Lamento informar que cada causa existe por si só em separado. Defender que uma mulher ou uma pessoa queer não deve olhar pela Palestina, porque se aí fosse acabaria por ser perseguida ou até mesmo assassinada, é o mesmo que dizer que não merecem ajuda humanitária, pois estão a ter o que merecem e que esta limpeza é necessária. Afinal, quem é que se está realmente a aproveitar das causas? Como referia Júlio César, é necessário dividir para conquistar. Dessumimos neste caso que, por um lado, se tenta disfarçar o racismo e a aporofobia com o retrocesso e, por outro lado, que o genocídio é
demonstrado como o passo necessário para um suposto progresso.

Na noite do passado domingo, dia 5, regressaram a Portugal os quatro portugueses detidos pelas autoridades israelitas na flotilha humanitária que se destinava a Gaza. Mariana Mortágua, Sofia Aparício, Miguel Duarte e Diogo Chaves embarcaram nesta nobre missão com o objetivo de levar aos palestinianos um pouco daquilo de que têm sido privados há quase dois anos. Como seria de esperar, também esta viagem alcançou o campo político e foi concomitantemente instrumentalizada como arma política, principalmente após a detenção do grupo pelas forças israelitas. Pouco se fez, pouco se quis saber, o interesse no sucedido esteve de mãos dadas com a suposta imprudência, com o aparente ridículo e com uma certa hipocrisia – felizmente, o direito internacional existe.

No fundo, este texto teve como objetivo mostrar duas coisas: que a nossa democracia se encontra desvirtuada, que estamos numa fase em que vale tudo para fazer valer a sua posição, e que preservar o uso da palavra em democracia é o que menos prevalece; e, simultaneamente, e em consequência do primeiro propósito, que facilmente se instrumentalizam vidas e que se banalizam mortes para atacar o outro. Nada já importa, se não a nossa sobrevivência, somos democráticos, mas ao mesmo tempo egoístas e individualistas; queremos igualdade e respeito, mas a que preço?

E sabem qual é o pior erro? Permanecer na ignorância de acreditar que a democracia é vitalícia ou que eventualmente caducará quando já cá não estivermos. Ah, e por certo, acreditar também que ainda exista alguém que zele por todos os nossos próprios direitos; porque os dos outros… esses deixaram de nos importar há muito tempo.

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