“Não se fala do elefante no meio da sala”. Confesso que, em criança, tinha dificuldade em compreender o significado e o sentido de dita expressão. “Que elefante? De que cor? Em que sala? Na minha?”, perguntava o pequeno Pedro quando ouvia ou lia esta suposta constatação. Com o passar do tempo, esta metáfora começou a fazer cada vez mais sentido, principalmente no que toca à política. É muito mais fácil ignorar o óbvio, não é verdade? Varrer para debaixo do tapete aquilo que incomoda, que inquieta, que é desagradável e turbulento. De elefantes está a sala do mundo cheia, e há um elefante em particular que tem dado muito que falar, composto por três riscas, uma preta, uma branca e uma verde, com um triângulo vermelho à esquerda.

No entanto, para falar do conflito que desde outubro de 2023 invadiu todos os órgãos de comunicação social, necessitaríamos um grande contexto histórico. Porém, não o farei integralmente, pois um artigo apenas não seria suficiente para incluir tanta informação e porque estamos a falar de um conflito que já tem mais de 100 anos de duração e vários envolvidos. Diversos acordos e tratados foram assinados, foram feitas já diversas conferências, mas a paz está longe de ser alcançada e o fogo de ser cessado. Falamos de povos que queriam um local onde se estabelecer, que exigiam o seu reconhecimento enquanto Estado; uma questão de religião, território ou identidade? Ou tudo?

Há que compreender, contudo, que o que está na origem deste conflito tem o nome de movimento sionista, um movimento político criado pelo jornalista judeu Theodor Herzl, em finais do século XIX, que visava a criação de um Estado judeu. Este não tinha, portanto, origem na religião, sendo um projeto político, nacionalista e intrinsecamente colonial. O objetivo não era ocupar a Palestina, Herzl inclusive tinha outros locais em mente, onde os judeus poderiam construir o seu lar e ter o seu lugar de proteção e reconhecimento, após séculos de violentos ataques de antissemitismo. Aquando da I Guerra Mundial, os franceses e os britânicos necessitavam do apoio dos árabes para derrotar o Império Otomano, e para tal aproveitaram-se do seu desejo de independência. O que não sabiam os árabes, é que outros acordos estavam a ser assinados por debaixo da mesa, e ao ficarem sob o domínio da Grã-Bretanha, que eram apoiantes do movimento sionista, os palestinianos acabaram por assistir à tentativa de construção de “um lar nacional judeu na Palestina”. A colonização sionista da Palestina histórica não é um mero acaso, se não resultado das escolhas de potências da época, que foram os primeiros a incentivar esta perseguição, isto é, a substituição da população que já se encontrava aí a viver, por uma população de colonos emigrantes.

Após as exigências provenientes de ambos os povos e o incremento de ataques terroristas na Palestina, os britânicos optaram por deixar o caso a cargo da recém-formada Organização das Nações Unidas (ONU), que em 1947 dividiu o território em dois Estados: um judeu, tendo ficado com 55% do território, ainda que representassem uma população inferior a 6%, e outro árabe, que ficaria com a restante área geografia, apesar de a população ser constituída maioritariamente por muçulmanos e cristãos. Ambos recusaram a proposta e no decorrer dos acontecimentos, em 1948, criou-se unilateralmente o Estado de Israel, marcando-se assim o nascimento do primeiro Estado judeu; desta forma, teve então início um processo de expulsão de milhares de pessoas de diferentes credos e de distintas posições sociais, as quais viram as suas casas, terras, bens pessoais e coletivos serem expropriados e apoderados pelos colonos que chegavam, ou destruídos.

E, a partir daqui, começaram as invasões, os ataques, a guerra que se queria silenciosa e que durante muito tempo assim esteve. Árabes e judeus, todos seres humanos, todos constituídos por células, mas algo os separava. E o Médio Oriente quase sempre foi vista como “a outra zona”, onde o que acontece aí não tem importância. Só falamos do que acontece na Europa e nos Estados Unidos: as grandes potências (ironicamente, as próprias que ao longo de anos serviram para atiçar e incentivar o conflito). A delimitação sempre a mudar, década após década; há tratados, há uma aproximação de paz e de cessar-fogo, mas não é suficiente e voltamos à estaca zero – variável constante.

Infelizmente, chegámos ao momento em que o território vale mais que a vida de inocentes. Israel é um Estado reconhecido pela maioria dos Estados a nível mundial, tem a sua produção, indústria e uma economia estável, mas não parece ser suficiente. Com o apoio do presidente dos Estados Unidos da América (EUA), Donald Trump, cujo programa enquanto chefe de estado e do governo é o de assumir a figura do messias e de terminar com todos os conflitos, a “limpeza” será feita e o controlo da Faixa da Gaza permitirá a criação do tão invejável resort que Trump partilhou na sua rede social.

Posto isto, pergunto-me: não podia ter-se sido evitado tudo isto? Estamos perante uma perseguição que conta já com imensas décadas e os próprios dirigentes políticos ou a própria ONU não tinham consciência do que estava a acontecer? Foi necessário ocorrer um massacre gigantesco num festival de música, que despoletou um conflito ainda mais intenso e este ser noticiado diariamente para começarem a tomar as devidas providencias? Em 1974, a Palestina apenas foi reconhecida pela ONU enquanto observadora, mas não enquanto entidade estatal; somente em 2012 é que ganhou o estatuto de Estado observador não-membro; e em 2013 a existência do Estado da Palestina era reconhecida por 137 dos 193 países-membros da ONU. Mas, porque nunca como Estado-membro? Será uma questão de cor? De nível de pobreza? De idioma? De religião? Ou sentimento de culpa?

Uma das questões mais controversas sobre o tema remete para o Festival Eurovisão da Canção. “Que tem isto a ver?”, perguntarão os meus caros leitores. Ora, este festival foi criado em 1956, quando a Europa ainda se estava a levantar das cinzas resultantes da II Guerra Mundial, com o intuito de unir os países europeus, através da música, promovendo assim a paz entre todos. Em 1973, esta delimitação é desfeita quando a União Europeia de Radiodifusão (UER) aprova a participação de Israel na Eurovisão e assim se mantém até aos dias de hoje. Porém, as duas últimas prestações do Estado judeu foram as mais constatadas de sempre, resultado precisamente do que tem acontecido nas últimos (quase) dois anos. Além disso, a própria organização faz questão de afirmar todos os anos que o festival é “apolítico”, mas não concebe que ao permitir a participação de Israel no concurso, ao aceitar que o mesmo leve canções que contêm mensagens políticas e ao impedir que o público não leve consigo bandeiras do coletivo LGBT (justamente para encobrir a proibição da mostra de bandeiras alusivas à Palestina), está exatamente a assumir uma posição política? A própria UER quis sancionar a Radio y Televisión Española (RTVE), pelo facto de os seus tradutores, na segunda semifinal deste ano, terem referido o número de mortes de palestinianos, no decorrer da invasão de Israel, enquanto era emitido o vídeo de apresentação da representante; de forma a mostrar pé finco, a RTVE iniciou a transmissão da grande final com uma mensagem escrita sobre o ecrã negro “Frente a los derechos humanos, el silencio no es uma ópcion. Paz y Justicia para Palestina”.

Até aqui tenho evitado utilizar uma palavra para descrever todos os acontecimentos, de maneira propositada, diga-se de passagem, já que imensos Estados também o evitaram fazer: genocídio. Descrever os atos de Israel enquanto genocidas tem sido algo que não tem sido feito e que tem gerado, igualmente, uma enorme contestação. Contudo, vários especialistas em Direito e Relações Internacionais, assim como a própria Amnistia Internacional, já reconheceram estas práticas como genocidas. Homicídio e ofensas graves à integridade física ou mental do grupo, tal como a sujeição intencional do mesmo a condições de vida com vista a provocar a sua destruição física, total ou parcial, aliada à intenção de destruição, são alguns dos pontos que caracterizam os atos genocidas. Porque não o mencionam, então, os outros Estados? Por medo das represálias, pela necessidade que adviria daí em rever acordos, impor sanções, modificar a postura diplomática. Tudo isto mais importante que a vida humana, aparentemente.

Até à data, 147 dos 193 países-membros da ONU já reconheceram o Estado da Palestina. Em setembro, mais 12 países europeus, entre eles Portugal, e ainda o Canadá, a Austrália e a Nova Zelândia, pretendem fazer o mesmo numa declaração, assinada pelos seus chefes da diplomacia, que expressa uma “profunda preocupação com o elevado número de vítimas civis e a situação humanitária em Gaza”, tendo já a ONU denunciado a fome nesta região. No entanto, é curioso denotar que nas condições que o Governo português impõe parece haver uma espécie de tentativa de criação de acordo com o Deus e com o Diabo, uma vez que fala em “condenar os atos terroristas do Hamas”, mas e os de Israel? Não têm ambos a sua quota de culpa no conflito? “A aceitação de um Estado palestiniano desmilitarizado”, com que intuito? Deixá-lo à merce de qualquer outro ataque? “O reconhecimento do Estado de Israel e das suas necessidades de segurança”, porém Portugal reconhece o Estado de Israel desde 1977, logo…? Por outro lado, a Alemanha, por exemplo, considera que não há condições para avançar com o reconhecimento da Palestina, e porquê? A resposta a mim parece-me um pouco óbvia.

Não é possível, concomitantemente, deixar de verificar como, de modo geral, a Europa reconheceu o ataque da Rússia à Ucrânia e rapidamente tomou uma posição e medidas, mas, neste caso, a lucidez demorou mais de um ano a chegar e ainda não foi em totalidade. A verdade é que as críticas a Israel têm sido cada vez maiores, por um lado, pela intensificação dos ataques, e, por outro, por estar a cercar as fronteiras da Faixa de Gaza e a impedir a entrada e saída de pessoas, nomeadamente de jornalistas e de ajuda humanitária. No entanto, isso não parece contribuir para que os demais Estados condenem a sua atuação e reconheçam aquilo que está realmente a acontecer: um genocídio a céu aberto. Uma vez mais, temos aqui a prova de que o mal se banalizou, tal como referiu Hannah Arendt, na sua obra Eichmann em Jerusalém (1963), onde argumentava precisamente que o mal não é ontológico, nem metafisico, se não político, histórico e resultado de relações institucionais. Oxalá, futuramente haja menos elefantes e uma maior lucidez em todas as salas do mundo e que inocentes deixem de pagar por escolhas que não são suas, que deixem de sofrer pela ganância dos que estão no controlo e que, acima de tudo, deixem de ser perseguidos e assassinados por serem quem são.

Carregar mais artigos relacionados
Carregar mais artigos por Redacção
Carregar mais artigos em Destaque Principal

Veja também

Se o seu carro é a gasolina abasteça durante o fim-de-semana porque o preço vai subir

A semana de 17 a 23 de Novembro não traz notícias favoráveis ao condutores: o preço dos co…