Mais desolador que ver a forma como as chamas consomem a matéria e deixam um rasto de destruição de forma ágil, só mesmo a celeridade com que a ignorância sai de casa e invade o mundo (digital). E não, não será um artigo sobre o cenário devastador a que temos assistido devido aos incêndios. Mas poderia ser. Não é mais uma crítica ao governo e à forma precária e negligente como têm gerido a situação. Mas poderia ser.
Trata-se de uma tela mais pequena, de uma situação com menor magnitude e gravidade, porém que, ainda assim, revela o estado insciente para o qual da sociedade atual caminha.
Não fiquemos em Portugal, viajemos até Espanha, Córdoba para ser mais preciso. No passado dia 8 de agosto de 2025, um incêndio na imponente Mesquita- Catedral de Córdoba fez soar os alarmes pelas 21h15. Do exterior era possível observar a forma como as chamas consumiam uma das capelas deste edifício, imagem essa que rapidamente se disseminou por toda a internet. O quadro que se montava não era, de facto, o melhor, devido às altas temperaturas e aos materiais que compunham este local, nomeadamente a madeira, que acabou por se tornar um bom combustível. Tudo apontava para uma tragédia semelhante à que aconteceu na Catedral de Notre-Dame, em Abril de 2019. Ao fim de uma hora e meia, os bombeiros conseguiram finalmente controlar o fogo, minimizando assim estragos que poderiam ser de dimensões muito maiores. E recordemos, por fim, que este não é o primeiro incêndio a afetar a Mesquita- Catedral de Córdoba, é na verdade o terceiro; em 1910 e em 2001, este emblemático
edifício com mais de 1000 anos sofreu outros dois incêndios de que há registo. Entretanto, os estragos já foram levantados, assim como a possível causa do sucedido. Ao que tudo indica, um curto-circuito de um objeto de limpeza elétrico, armazenado numa das capelas utilizada como armazém de limpeza, terá estado na origem deste fenómeno, contribuindo para a danificação de três capelas, tendo o teto de uma delas acabado por ruir. Os planos de restauração e restruturação já foram ativados e a Mesquita já pode ser visitada com a devida normalidade. Porém, o meu ponto não reside no incêndio, como também não reside nas suas causas, nem no futuro deste monumento que em breve terá as devidas intervenções de reabilitação. Reações. A internet está cheia delas. O imediatismo foi algo que veio para dominar. Todos querem ser os primeiros a noticiar ou a comentar. Escrevem a primeira coisa que o seu lobo frontal processa e assim fica registado para que milhares o leiam e aí ficará para a eternidade. No parágrafo anterior, referi a Mesquita-Catedral de Córdoba como somente Mesquita, e foi propositado, já que é assim que é comumente conhecida.
Contudo, o comum nem sempre limita ou reduz o objeto a que se refere, é apenas uma forma de simplificação na linguagem, tanto oral como escrita. Mas, independentemente disto, não há nada que justifique ou que permita compreender os comentários de felicidade pela destruição do edifício; não se assimila que a destruição de um monumento emblemático e que tanto carrega seja motivo para “finalmentes” ou “bem- feitas”, sem sequer prever se adviriam consequências mais graves. No fundo, é difícil de apreender como é que o ódio gratuito e o preconceito já tomaram proporções ainda maiores que àquelas que já eram difíceis de conceber, somente por se ler o termo “Mesquita” e automaticamente associá-lo a “islamismo”. Ou seja, não só os imigrantes são alvo desta ignorância, não só a mudança do espetro político do poder legislativo, como também já o próprio património.
Mas porque esta designação? Sendo duas correntes religiosas distintas como podem confluir num mesmo espaço? Pois bem, para os que se possam estar a questionar acerca desta denominação, é necessário viajar uns 1500 anos para a compreender.
Falamos de um templo cuja estrutura inicial, de acordo com as fontes, fora construída por católicos, já que em escavações foi encontrado um complexo episcopal, construído no século V. Posteriormente, após a chegada dos muçulmanos à Península Ibérica, construiu-se, neste templo cristiano, uma mesquita, que se constituiu enquanto uma aljama, funcionado assim como um local de culto. Este edifício foi alvo de várias ampliações, tendo, à época, sido considerada a segunda maior mesquita do mundo. O templo volta a ser recuperado pelos cristãos em 1236, depois de a cidade de Córdoba ser conquistada pelo rei Fernando III de Castilha. Este levou a cabo a sua congregação como edifício cristão, ainda que só tenha sido reconhecido como tal, pela diocese, dois anos mais tarde. A Mesquita-Catedral sofreu novamente intervenções, tendo sido ampliada, no século XVI, com a construção da capela maior, uma das mais
emblemáticas para aqueles que a visitam nos dias de hoje.
Demonstrada a relevância histórica e cultural do edifício, sem esquecer a congregação de diferentes estilos artísticos que o caracterizam, a Mesquita-Catedral de Córdoba é, portanto, um símbolo da história hispano-muçulmana. Não é por acaso que este templo é Bem de Interesse Cultural e Património Mundial desde 1984; não foi ao acaso que a UNESCO lhe atribuiu tal classificação; e não é ao acaso que é um dos
monumentos mais bonitos e importantes de Espanha. Ainda assim, nada disto importa perante o ódio, a raiva e a ignorância. Ignorância essa que, justamente, cegou os olhos de alguns, que ao lerem mesquita associaram-na a um local de prática judaica, quando precisamente é um templo católico desde o século XIII.
Assim vemos como a informação é importante e poderosa. O saber não ocupa espaço, já dizia o senso comum, e é, por isso, de extrema importância que estejamos no domínio de todos os dados e referências imprescindíveis sobre o tema do qual estamos a tratar. É muito fácil falar ou escrever a primeira coisa que nos vem à cabeça, porém nunca se pensa nas consequências que essas mesmas palavras vão ter seja para quem for. Informação, consciência e bom senso: a tríade da Santíssima Trindade que falta aos novos críticos.
