“Heróis sem Capa”. Esta é a expressão portuguesa utilizada para enaltecer os bombeiros, especialmente os voluntários, pelo seu labor altruísta com risco da própria vida, em defesa do próximo e do património.
A cada Verão, a frase ganha corpo no horror das chamas que devastam milhares de hectares de pasto e floresta.
É sempre o mesmo fado, e de ano para ano parece piorar : o fatalismo do lume a engolir a vegetação, a matar a fauna sem que se consiga ter a perceção real de quantos animais perdem a vida calcinados ou asfixiados, bens destruídos, casas queimadas e as que se conseguem salvar (felizmente a maioria) crivadas de negrume nas paredes e imersas num cheiro que leva tempo a apagar…
É um dó d’alma ver nos noticiários a aflição das pessoas a tentar salvar o que construíram ao longo da vida, a enfrentarem as chamas com o que têm à mão, resistentes a virar costas ao que possuem. Ficar é muitas vezes a única hipótese de salvação, porque os bombeiros não conseguem chegar a todo o lado.
Quem conhece o interior norte e centro do país sabe da dimensão do risco. Aldeias isoladas, imersas na vegetação, na maioria habitadas por idosos que resistiram ao êxodo ou à emigração, ou pelos que voltaram à terra para passar a velhice no lugar onde nasceram… Raros são os que passam pela vida sem se cruzarem com o apocalipse. Uma, duas, três … várias vezes. Quanto mais anos têm, mais vezes viram a floresta e o mato emergir das cinzas, a crescer para voltar a ser combustível de outros fogos que estão para vir. No intervalo, enfrentam chuvas aluvionares nas estações frias, derrocadas de terrenos, quedas de árvores mortas que se despenham pelas encostas da serra e que às vezes se depositam nas estradas de terra batida e caminhos por onde circulam os poucos que teimam em manter uma frágil circulação de vida humana: os próprios residentes, o padeiro, o vendedor de peixe, a carrinha do lar que transporta os mais velhos e frágeis das aldeias à sede de concelho, os sapadores florestais…
É este Portugal recôndito que mais arde sob o alto patrocínio da sucessão de governos e governantes que dão a cara nos fóruns de debate, na época alta da ignição, com a nota comum da crítica retroativa, excelentes performers da dança do empurra, que é a segunda mais popular nos bailaricos nacionais, e que vem logo a seguir à das cadeiras, sem que haja quem priorize efetivamente o ordenamento territorial.
A cada ano a tradição cumpre-se. A notícia pop de Julho e Agosto não desaponta nas previsões e dispensa apostas. Os noticiários dos vários canais generalistas têm um sincronismo rigoroso na abertura com os pivots a dar a deixa para os repórteres no terreno, que relatam “o horror, a tragédia”….
No fio da navalha, os “Heróis sem Capa” partem todos os dias para esta guerra, carregados de coragem e com os bolsos cheios de exaustão. As sirenes não param de tocar. Os quarteis estão em prevenção permanente, para defender o próprio território ou partir em auxílio de outras corporações, seja lá onde for. Não param, não descansam… E não há coração empedernido que não se comova quando vê um carro dos bombeiros passar. Sabemos que vão enfrentar o inferno, temperaturas inimagináveis. Na fase de pré-aquecimento, o calor propagado por um incêndio florestal pode variar entre os 260 e os 400º, mas quando se dá a destilação ou combustão dos gases, a temperatura pode ultrapassar os 1 000 graus. Os fogos geram micro climas, tornados de chama, são obstinados, viram inopinadamente de direção, ganham velocidade, encurralam… matam pessoas! Em 2017 foram 117 as vidas humanas que se perderam.
Estado Português, está na altura de agir: cadastrar terrenos, repovoar, reabilitar a exploração sustentável da floresta, reintroduzir rebanhos… e ter a coragem de mexer no que incomoda e dá lucro.
Portugal e os “Heróis sem Capa” precisam descansar.

