Já em 1974, Sérgio Godinho cantava “A paz, o pão, habitação, saúde, educação”, e este verso leva-nos a pensar e repensar o estado da sociedade nos dias de hoje. Garantia de paz, com várias guerras (não só na conceção de conflito bélico do termo) a decorrer? Compra de pão com o cabaz alimentar cada vez mais inflacionado? Da habitação nem se fala, tendo em conta o descontrolo de preços no mercado. Para olhar para a saúde basta ver o estado das urgências, do INEM, ou das mais diversas especialidades. A educação só para se ser empresário, nada mais. Tal como prometido, e de maneira a encerrar esta análise ao pacote de medidas que o governo aprovou em Conselhos de Ministros, as quais algumas já foram aprovadas e outras irá levar a votação na Assembleia da República, debrucemo-nos sobre as alterações aos escalões de IRS e sobre a reforma ao Código do Trabalho.

Gostaria de começar por fazer uma nota sobre a forma como o governo de Luís Montenegro tem atuado ultimamente e que tem sido alvo de análise por vários especialistas. É curioso observar como a seta do espetro se tem deslocado cada vez mais para a direita; é curioso também verificar a tendência de um partido que se identifica com os pressupostos da social-democracia cada vez mais direcionados para a ala direita. Estaremos então a assistir à descentralização do Partido Social Democrata? A resposta a esta pergunta deveria ser negativa, já que o secretário-geral deste partido sempre prometeu que não iria compactuar com a agenda da extrema-direita, porém, o que temos verificado ultimamente? Estará para chegar algum tipo de pacto entre o governo e o Chega?

Ora, divagações à parte, vamos àquilo que nos trouxe aqui. Após as alterações à Lei dos Estrangeiros e a reforma de Estado para a Educação, há que, inevitavelmente, olhar para as alterações propostas aos escalões do IRS e para as mudanças previstas no Código do Trabalho, tema esse que tem criado também um grande alarme em partidos, sindicatos, associações, entre outros.

Estou longe de ser economista, nem tenho formação de tal, porém é fácil de compreender o que acontece quando temos uma redução das taxas dos oito primeiros escalões do IRS. A medida, que, entretanto, já foi aprovada com votos a favor do PSD, Chega, Iniciativa Liberal, CDS e PAN, implica uma redução de 0,5 pontos percentuais no 1.º, 2.º e 3.º escalões (até 8.059€, de mais de 8.059€ a 12.160€, e de mais de 12.160€ a 17.233€, inclusive, de rendimento coletável anual); nos 4.º, 5.º e 6.º escalões (de mais de 17.233€ até 22.306€, de mais de 22.306€ a 28.400€, e de mais de 28.400€ até 41.629€), a redução é de 0,6 pontos percentuais; os 7.º e 8.º escalões (de mais de 41.629€ até 44.987€, e de 44.987€ a 83.696€) beneficiam de uma redução de 0,4 pontos percentuais; e, por fim, o 9.º escalão (superior a 83.696€ anuais) mantem-se inalterável. Contudo, para esta questão é importante saber como se aplicam estas taxas e como é feito o seu cálculo sobre os rendimentos. Grande parte da população pensa que paga uma só taxa correspondente ao escalão em que se encontra, por exemplo, a uma pessoa que na sua declaração de IRS tenha uma soma de 10.000€ de rendimento é-lhe atribuído o 2.º escalão da tabela. Mas, ao estar neste escalão, significa que, na realidade, pagará a percentagem do 1.º escalão aplicada ao valor máximo deste (8.059€) e, simultaneamente, a taxa referente ao 2.º escalão aplicada à diferença entre o valor que o contribuinte declarou e o valor teto do 1.º escalão.

Logo, podemos dessumir que esta redução permite assim aliviar a carga fiscal da maioria das famílias portuguesas, sendo, ainda assim, mais beneficiadas aquelas que têm rendimentos superiores, ou seja, os últimos escalões. Uma pessoa que se encontre no 8.º escalão beneficiará de todas estas reduções, desde o 1.º ao 7.º e aquela que é aplicada no seu escalão. Em 2023, de acordo com o Eurostat, a carga fiscal em Portugal era de 37,6% (o que representou uma descida de 0,3% face ao ano de 2022), sendo mais baixa que a média da União Europeia (UE), que se situava, nesse mesmo ano, nos 40,0%. Desta forma, até poderíamos afirmar que estamos relativamente bem, quando comparados com os restantes países de EU, no entanto, se é possível reduzir ainda mais esta carga, então sou totalmente a favor que o façamos. Ainda assim, sou também a favor que quem mais tenha de beneficiar com este alívio sejam os contribuintes com rendimentos mais baixos, cuja taxa possa ser demasiado pesada face às receitas do agregado. E se sabemos que ao aliviar os escalões mais baixos, estamos também a aliviar os escalões consequentes, porque não aplicar esta redução somente até ao 3.º ou 4.º escalão, de maneira que esta seja efetivamente justa? Além disto, esta alteração contribuirá também para uma menor riqueza do Estado, já que reterá uma receita menor proveniente destes impostos (nada de estranho, tendo em conta a função menos interventiva do Estado que a direita defende), e pergunto então, onde vai buscar receitas para colmatar problemas estruturais evidentes e que necessitam de uma intervenção urgente? Neste caso, resta-me apenas sugerir que aproveitem o dinheiro ainda disponível para investir em meios necessários ao combate dos incêndios – ou não, já que a Ministra da Administração Interna referiu que “não ajuda nada saber quantos meios aéreos temos”, desvalorizando assim a falta destes e referindo que uma “intervenção” por partes destes “seria irrelevante” – ou em melhorar o INEM, já que a auditoria mais recente a que tivemos acesso revelou justamente falhas altamente graves a nível da gestão, sendo a sua reforma urgente e prioritária.

Posteriormente, aproveitando que se discutem as taxas aplicadas ao rendimento coletável, olhemos para a reforma a ser aplicada ao Código do Trabalho, já que a maioria destes rendimentos advém da atividade laboral. Recentemente, o Conselho de Ministros aprovou um projeto de reforma laboral chamado “Trabalho XXI”, o qual comtempla a flexibilização das regras laborais, incentivos ao emprego jovem, o que implicaria a alteração em mais de 100 artigos do Código do Trabalho. De entre as alterações propostas, que dizem respeito às greves, teletrabalho, lay-off, entre outras, as que me chamaram mais a atenção foram aquelas que afetam principalmente os jovens, que são os que maioritariamente trabalham com contratos a termo certo, e os pais.

Relativamente aos contratos a termo certo, que até agora podiam ter uma duração mínima de 6 meses e uma máxima de 2 anos, estes são alargados para o prazo mínimo de 1 ano e máximo de 3 anos. Ao longo dos últimos anos, e cuja tendência se mantém, os números revelaram que mais de metade dos jovens que estão a exercer uma atividade profissional estão sob contrato a termo certo. Estes são os famosos contratos que só poderiam ser renovados 2 vezes, sendo que a terceira renovação já não chegaria a acontecer, porque o trabalhador teria de passar a um regime com contrato efetivo, garantindo-lhe maior estabilidade e mais direitos laborais. É extremamente difícil para os jovens conseguirem um emprego estável precisamente devido à existência deste tipo de contratos e das poucas garantias que proporcionam; assim sendo, estender os prazos deste tipo de contratos apenas permite às empresas continuar aquilo que sempre fizeram: não assegurar estabilidade aos trabalhadores.

O mais preocupante no meio de toda esta reforma, a meu ver, foi evidentemente o que propuseram para os pais, seja no contexto de perda do feto ou no momento pós-nascimento. De forma a não alongar muito mais a exposição de medidas, falo-vos da eliminação de 3 dias de falta justificada de luto gestacional, que estão consagrados no Código do Trabalho. Pessoalmente, nunca vivenciei um processo similar, mas posso acreditar que tem as suas implicações tanto físicas, para quem carrega o embrião, como emocionais para os progenitores. Quem o explica é o secretariado nacional das Mulheres Socialistas, Igualdade e Direitos (MS-ID) ao referir “(…) que muitas perdas gestacionais (…) são espontâneas, traumáticas e inesperadas”, defendendo ainda que esta período garantia “(…) um tempo mínimo de luto e dignidade (…)”. E parece-me um tanto insensível propor a exclusão deste luto e manter somente a baixa médica ou as faltas para assistência à família; por um lado, temos os 3 primeiros dias da baixa a não serem pagos, o que por si só já é uma desvantagem, mas e relativamente à baixa? Só é aplicável se a perda gerar algum dano físico ou for resultado de uma intervenção médica? E no caso do pai que só poderá gozar desta assistência na necessidade de assistir a mulher, como esta lei prevê, e que, no entanto, os dias de falta não são remunerados? Como afirmam as MS-ID, “O Governo cede novamente a uma agenda populista e desumana que desvaloriza a dor, omite o luto e desumaniza a sociedade, desvalorizando as emoções que envolvem a perda de uma gravidez”.

Já no pós-nascimento, enquanto o bebé se encontrava em período de aleitamento, a mãe dispunha de uma redução do seu horário laboral em 2 horas diárias para poder, efetivamente, alimentar o seu filho. Até à data, não existia qualquer limite para a redução deste horário que não fosse “até terminar o aleitamento materno”, tendo a trabalhadora de o comunicar à empresa com 10 dias de antecedência e apenas apresentar atestado médico se esta dispensa se prolongasse além do primeiro ano de vida da criança. O que veio dizer, recentemente, Rosário Palma Ramalho, Ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, é que acredita que há mães a aproveitarem-se deste benefício para prolongar a dispensa até que a criança vá para o ensino primário e que, consequentemente, lhe é “difícil de conceber que, depois dos dois anos, uma criança tenha que ser alimentada ao peito durante o horário de trabalho”. Nesse sentido, o anteprojeto que o Governo apresentou prevê, então, que a dispensa ocorra até a criança completar 2 anos de vida, além de ter de apresentar um atestado médico no início deste período e, posteriormente, a cada 6 meses. Tenhamos em conta que, caso ninguém tenha dito à senhora doutora ministra, a Organização Mundial da Saúde afirma que a amamentação se deve manter até aos 2 anos de idade ou mais, após a introdução de novos alimentos, que ocorre sensivelmente por volta dos 6 meses de idade, por todos os benefícios complementares que tem para o bebé. Quiçá também, a Dr.ª Maria do Rosário Ramalho não se tenha lembrado de garantir direitos laborais às grávidas e progenitores, ao invés de retirá-los. É dramático e escandalizante que mulheres continuem a ser despedidas durante o período de gravidez, de pós-parto ou de licença de maternidade, ou que se vejam impedidas de progredir profissionalmente, e ninguém fazer nada a respeito disso.

Em suma, todas estas medidas acabam por beneficiar somente os patrões, já que os direitos e garantias dos trabalhadores ficam ameaçados (vejamos que até colocam 2 dias de férias à venda!). Os sindicatos, por exemplo, não vêm estas medidas com bons olhos e creem justamente que constituem um atentado a tudo aquilo que já foi conquistado até aos dias de hoje. O governo queixa-se de que os jovens não estão empregados, que muitos deles estão a emigrar e que as taxas de natalidade estão a diminuir, porém acaba por pecar ao implementar uma regressão de direitos laborais, nos quais os mais afetados são os jovens e as mulheres e, por consequência, as crianças também.

Ao longo destes três artigos, observámos precisamente a forma como o governo tem alterados leis, currículos, estruturas e direitos que considerávamos já garantidos. Tal como se previa, estamos a assistir a uma gradual regressão de parte daquilo que levou anos a conquistar. Não sei se por implicância, por desdém, ou outro motivo qualquer, mas a verdade é que esta legislatura tem contribuído para derrubar o alcançado na última década; contudo, os preços das casas têm subido de forma abismal e exponencial e o Serviço Nacional de Saúde tem revelado possuir falhas fraturantes e altamente ameaçadoras, e quanto a isto, não vejo o governo da Aliança Democrática aplicar medidas concretas e eficazes para colmatar os problemas desta natureza, o que revela uma clara troca de prioridades. Terminando por onde comecei, cito Maria Lúcia Amaral, Ministra da Administração Interna, a respeito da imigração, “Não há liberdade sem segurança. E não há segurança sem controlo de fronteiras”. Para mim não há liberdade quando vejo que poderei não sair de casa da minha mãe quando gostaria, para mim não há liberdade quando vejo que dificilmente possa ter um contrato a termo incerto, para mim não há liberdade quando tenho de esperar horas sem fim para ser atendido nas urgências (ou meses por uma consulta de especialidade), para mim não há liberdade quando os meus filhos forem para uma escola onde não há uma educação inclusiva e diversificada. Para mim não há liberdade quando não há direitos e respeito!

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