É uma receita da avó.
Pega-se em duas velhas
De preferência a nossa avó
E a nossa tia-avó.
Metem-se dentro do Inverno
Com xailes pelas costas
Embrulhadas como em gorpelhas.
Encosta-se-lhes um gemido de frio
Para elas correrem para a lareira,
Lume de pé, emborrascado.
Junta-se um gato pardo
Lambendo, lavando,
As intimidades do seu corpo,
Já chamuscado em outros invernos,
Com a experiência do aconchego
Da avó, da tia-avó, irmã da avó,
Como que família do gato pardo,
Porque gato preto ali não entrava,
Bastava o negro dos seus xailes.
Ah! Que me tinha esquecido de dizer,
Que de negro se tinham feito os seus lutos,
Pelos pais, pelos maridos, em média,
Um e meio por cada inverno.
Certamente acumulavam todos os lutos.
Um ano pelos pais e pelos maridos
Mais um ano para “aliviar” como elas diziam.
Meio ano pelos tios mais os primos,
Que eram às dezenas.
Até herdavam os lutos não cumpridos dos antepassados.
Parecia mal não cumprir os lutos.
Ali ao lume depressa se fazia um tição rubro,
Rubro igual ao ferro na forja do ferrador,
Com fole de soprar e carvão de pedra
Que emprestava um cheiro sonolento
Que fazia lembrar
O combóio com locomotiva preta em que todos os anos viajava,
Por causa da bronquite, destino às “águas”,
No mês das canículas.
Retomando a receita,
Distribuíam-se-lhes duas conversas
Com apenas dois dedos de maldizer
Para não contaminarem em demasiado
O fogo da lareira e prejudicar o fazer da receita.
Emprestava-se-lhes uma cafeteira
Mas só de barro, daquele barro de Estremoz,
Que homenageava o barro dos trigos das ceifeiras,
De que eram feitas as leiras das hortas,
Desse mesmo barro vendido sobre as albardas dos jumentos, em carreiro a imitar contas do rosário da Senhora de Fátima a que a avó prestava culto,
No oratório, ao lado do Menino Jesus, ali mesmo aos pés do Senhor cruxificado, que inscrevia num pequeno pódio de onde se içava a cruz, em números tremidos, 19-11-1936. Também havia uma Nossa Senhora, mais pequena, que fazia as minhas delícias. Era a Senhora Luminosa. Debaixo da cama de ferro com espaldar floreado, no escuro, acendia-se toda.
A minha avó não punha flores no pequeno oratório mas dispunha as imagens sobre toalha de linho com uma aurela de renda aos losangos pendentes.
Mas que estava eu a contar?
Ah! Sim. Estava a falar dos barros: alfaias domésticas misturadas no palhiço para boa acomodação, e lá ia o loiceiro de porta em porta vendendo um texto à Senhora Maria Antónia, que o que tinha se tinha partido na outra semana, uma torteira à mulher do Senhor Manuel Felizardo, para fazer o ensopado
Para o filho que regressava da capital, na camioneta da carreira, para passar o Natal, a quem era preciso dar fortaleza, face à palidez
Causada pelos ares alfacinhas.
A minha mãe sempre comprava uma peça de loiça, nem que fosse o célebre testo, que era a peça mais barata. Dava sempre jeito para tapar o cântaro de água poisado no poial dos cântaros.
A receita continuava:
Ia-se à mercearia do Ti Quinze Réis
Comprava-se uma pitada de café,
Discutia-se com o homem, condição necessária para ser aviado,
Que abominava não ser contrariado, o que para mim era um paradoxo, já que a avó me ralhava quando não concordava com as minhas acções ou ditos. A minha tia-avó, a tia Maria, dizia asperamente que eu era um “espírito de contradição” o que me apoquentava muito.
Tinha que se pagar o café em tostões,
naquele ano da minha juventude, no ano de 1956. Mas a avó dizia sempre “paguei duzentos réis” e eu atalhava, avó diga “dois tostões”.
A minha juventude foi em 1956.
Não me perguntem porquê.
Talvez por ter uma avó e uma tia-avó
À lareira com uma tijela de café.
Mas voltando à receita da avó.
A avó e a tia-avó adoçavam o café
E vá lá, na máxima condescendência, compravam meio arrátel de açúcar,
“Para hoje dá”,
E para mim um pacote de farinha 33,
Ou melhor o brinde que vinha dentro do pacote.
O resto não me interessava,
Queria lá saber daquela beberragem
Com farinha misturada no leite.
Isso era bebida, dizia eu, para a avó e para a tia-avó,
Para duas velhinhas simpáticas que até me davam caramelos dissimulados na roda das suas saias para me aguçarem o desejo enquanto procurava as iguarias naqueles folhos.
Seguindo a receita, para não falhar,
Nem nos ingredientes nem no modo do fazer, mas já lá vamos.
A avó e a tia-avó ficavam arreliadas com o Ti Quinze Réis
Por ele se irritar com elas
À falta de contraditório,
Sim porque ele era um verdadeiro democrata, cultivava o contraditório; a PIDE que se lixasse. Viva a República! Viva a democracia!
E também lia a Bíblia.
Ler… não era bem ler, porque ele,
A literacia que tinha, foi buscá-la
Ao Antigo Testamento,
Nunca tendo passado do Génesis.
Mas se lhe pedissem para ler outro livro
Ele não era capaz. Recusava-se. Não sabia porquê
Mas ler só era possível na Sagrada Escritura.
Eu de petiz que era também nunca entendi
Por que razão só sabia ler o Livro Sagrado.
Na minha classe rapazitos e meninas
Sabíamos já ler quase tudo
Desde que as letras fossem gordas.
Por isso não compreendia bem,
Talvez fosse teimosia do “Senhor Réis” como eu lhe chamava.
Foi a ele que ouvi pela primeira vez
Aquela história da mulher nua de cabelos compridos, amiga de uma serpente,
Que comeu uma maçã.
Ora eu nunca tinha visto uma mulher nua,
Nem tão pouco tinha comido uma maçã.
Por isso compreendia
Porque diziam que o homem era perigoso
E as palavras da vizinhança soavam
Cá dentro e remoíam na minha cabeça:
“Ele até lê a Bíblia!”
Ah! Onde é que eu ia na receita?
Depois do arrátel de açúcar enfiado
Num pacote de papel pardo
Colado com quase um palmo de cola
E ainda por cima atirado para cima da balança
Com tal impulso…
Dizia a avó que era para dar mais peso.
Assim frequentemente eu atirava fora a expressão:
“Oh! Avó já não há açúcar”.
Chegados a casa, a avó, a tia-avó e eu
Depressa nos chegávamos à lareira.
Era uma chaminé de lume de chão que o avô tinha feito. Cabiam lá a avó, a tia-avó, eu, minha irmã e o gato, desde que estivesse enroscado, e não houvesse fumo. Ah! Se houvesse fumo todos saíamos de cima do lume, só ficava o gato pardo. Seria pardo por isso?
Elas atiçavam o lume,
Iam ao armário buscar a panela de barro
Metiam-lhe água até quase ficar cheia,
Punham-na ao lume, afastando o gato pardo.
No seu lugar metiam a panela
Que já disse ser de barro,
Um tudo-nada partida no rebordo.
O gato resmungava e a avó mais a tia-avó
Punham a água a ferver naquele barro.
Voltavam de novo a atiçar o lume
E ficavam de olho no único tição de azinho.
O resto dos tições era de lenha de oliveira.
Havia sempre um só tição de azinho, o príncipe dos tições.
Esta receita só saía bem
Com um tição de azinho.
Ao fim de meia hora ao borralho,
Chegava aquele momento imaginário,
Aquele momento, género fruto proibido,
A avó e a tia-avó deitavam o café
Para dentro da panela de barro com a água já a ferver.
Volvidos segundos seguravam no mais belo tição
E solenemente o introduziam na panela de barro.
Parece-me que o faziam as duas pegando no tição
Ao mesmo tempo,
Estilo noivos na cerimónia do casamento a partir o bolo de noiva,
Como tinha visto no casamento do tio Baleca com a tia Jeca.
Terá sido assim? Ou estarei a exagerar?
Depois desprendia-se da panela uma explosão,
Uma espécie de mistura explosiva
De brasa, de água a ferver e de café a vir ao de cima
Fazendo muitas bolinhas e a entornar-se no cinzeiro do lume. Depois o tição apagava-se, preto como os xailes e, já sem utilidade, era deitado de novo para o lume sem qualquer reconhecimento e respeito pelo que tinha representado de nobreza e de carácter, que só um tição de azinho pode ter.
Eu só assistia ao cerimonial até este acto se consumar.
Depois ia logo brincar com a única bola que tive.
Por sinal muito pequena que um dia achei.
A partir deste ponto nada posso acrescentar.
Não faço ideia se elas bebiam aquela poção mágica, pela mesma chávena,
Ou se era apenas para brincarem com o lume.
Mas brincar com o lume não seria certamente.
Muitas vezes me diziam que os meninos
Que brincavam com o lume faziam chichi na cama.
Fiquei no entanto sempre com a sensação
Da repetição daquele quadro bucólico passado no Paraíso.
E parecia-me adivinhar que a avó e a tia-avó
Estavam no jardim do Éden a manjar
Do fruto proibido,
Naquele ritual, idílio de satisfação, de prazer, de magia, de acto religioso, de fé no Paraíso,
De cumplicidade com a serpente.
Não fazia ideia se aquele café tinha o sabor da maçã que a Eva comeu.
E só não via a avó e a tia-avó em trajo nu
Devido aos pesados xailes pretos
Que cobriam a sua nudez.
Numa coisa estou certo. A avó e a tia-avó continuam a partilhar as suas receitas no Paraíso onde agora moram. Tanto mais que essas receitas são agora património imaterial da humanidade e, diria mais, dos anjos celestes, daqueles que neste Natal estão na gruta do presépio onde o Menino vai nascer.
António Balsas