Perguntei ao meu filho mais velho sobre o que deveria escrever esta semana. Ele não hesitou: “Sobre a Páscoa. E sobre Jesus, que não tem uma garrafa de vinho para beber com os amigos”. Uma resposta desconcertante –pensei –, mas que misturava tudo em termos exegéticos, pois Jesus teve de facto vinho para beber com os amigos na Última Ceia, que aliás transformou no Seu sangue e assim nasceu a Eucaristia. A falta de vinho deu-se três anos antes, nas Bodas de Caná.

Não é desesperar que alguém em vésperas de cumprir cinco anos seja especialista em Sagrada Escritura, mas também já percebi que os discursos das crianças são muito menos absurdos do que aparentam aos olhos dos adultos. Há quase sempre um racional bem definido por detrás de tudo o que dizem, ainda que as voltas para lá chegar possam ser dignas de um campeonato de ginástica acrobática. Neste caso, não tive tempo de puxar mais pela sua tese e fiquei a braços com uma hipótese tão atrevida para resolver.

Após a Última Ceia, Jesus não tem efectivamente mais vinho. Declara aos discípulos que não voltará a comer a Páscoa até que ela se cumpra no Reino de Deus (Lc 22, 15) nem a beber mais do fruto da videira até ao dia em que O beberá de novo com os discípulos no Reino de Seu Pai (Mt 26, 29). O fruto da videira só aparece fugazmente já na crucificação, quando uma esponja embebida em vinho e fel molha os lábios de Jesus, que a recusa tomar(Mt 27, 34). Depois de crucificado, morto e sepultado, Jesus ressuscita no primeiro novo domingo da História e sobe aos céus, onde Se senta à direita do Pai. Aí já celebra de novo a Páscoa, como tinha prometido aos seus discípulos. Mas pode ser que a questão de fundo, mais do que não haver vinho, seja que Jesus não tem com quem bebero Seu sangue, essa seiva do Céu sempre a jorrar, do qual uma só gota pode salvar do pecado todo o mundo?

Passei a Páscoa, como sempre, na freguesia mais recôndita de Avis, às margens da Ribeira Grande. Se o Alentejo, além de Alto, pode também ser profundo, encontra aqui a sua mais erma expressão, mas simultaneamente a mais bela. Desertificação, êxodo rural, abandono, tudo palavras que aqui estão a mais. Esta zona nunca deixou de ser deserta e despovoada. E se a prática religiosa alentejana sempre foi um fenómeno muito peculiar, quase exclusivo do sexo feminino, em terras como esta dir-se-á que está reduzida a um punhado de mulheres. Nem faz a meia-dúzia. Assim, foi sem surpresa que participei no acontecimento magno da vida cristã – a Vigília Pascal – quase sozinho com essas piedosas senhoras, que logo associei às santas mulheres que foram as únicas, com São João (com quem desde já descarto qualquer tipo de paralelismo), a acompanhar Cristo ao Calvário e as primeiras testemunhas da Sua ressurreição. Mas esta pouca afluência (e se falássemos de um evento comercial imagino que este desastre de bilheteira inviabilizaria qualquer tentativa de novas edições) deu-lhe uma beleza particular. A igreja deserta, as próprias ruas desertas, o frio que Abril ainda traz pelas noites, uma liturgia imemorial, os ritos ininteligíveis, a devoção do sacerdote, o humilde povo de Deus, a música sem grande ornamentação, a longa duração das cerimónias e as altas horas a que terminam são um catálogo da solenidade na essencialidade. Na catedral mais magnífica com as celebrações mais sumptuosas eu não teria a mesma experiência mística. Dificilmente este recolhimento se permitiria noutro contexto e talvez seja essa a maior (a única?) graça obtida em toda esta solidão.

Mas e o vinho? Aqui existem poucos para acompanhar a Ceia do Senhor, quanto mais para participar nela! No Alentejo alto e profundo a garrafa do vinho da Salvação ainda está por terminar. Só é bebericada em sorvos de passarinho espaçada e vagarosamente, como é próprio das mulheres alentejanas.

Artigo de Opinião publicado originalmente na edição impressa do jornal Linhas de Elvas nº 3716 de 13 de Abril de 2023

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