Qual é o sentido das procissões? Essa catrefada de gente em aformigadas filas operárias que ladeiam imagens, estátuas e prelados num passeio paradoxal entre uma partida e uma meta que tantas vezes são no mesmo lugar. O que andam lá a fazer? Depende das pessoas. Uns querem-se herdeiros dos antigos cortejos romanos, com louros e vitórias e bárbaros acorrentados em exibição pública. Outros, simples vaidade de exibir as opas, as capas, as vestes, a parafernália de paramentos e apetrechos de tão bela visão, um carnaval depois do Carnaval. Há os que lá estão pelos pactos feitos com o divino (gota curada – procissão descalça) e com o maligno (gota provocada – procissão descalça) e os que se esqueceram de cumprir as promessas anteriores. Há uns que estão porque têm mesmo de estar (noblesse oblige) e outros apenas porque querem estar com os que estão. Não faltam também as beatas e as carpideiras, os desamparados, os desconsolados, os indigentes, os cépticos, os revoltados, os arrivistas, os músicos, os escuteiros, os autarcas, os irmãos, os confrades, as avós, os netos e todo o povo de Deus. Enfim, é uma teia humana complexa.

Todos têm o seu motivo, e até os que não têm motivo nenhum encontram nesse vazio um propósito. Porque fazer uma procissão, por mais antagónico que hoje em dia pareça, é responder a uma ânsia interior por misericórdia. E a nossa miséria é tão grande que, por mais mundanas e mesquinhas que sejam as razões que nos levam a esse cortejo, e por mais distante que esteja o nosso espírito de desejar conversão, pobreza e sofrimento, acabamos por ser tocados nesse caminho penitencial. Como ficar indiferente ao rosto carregado de Jesus, que verga sob o peso da cruz, e ao de Sua Mãe dolorosa, que assiste impotente ao sofrimento de Deus? Só com esta visão, a procissão já se basta, não é preciso mais nada.

Jesus cai, e cai de novo e volta a cair ainda por uma terceira vez. Parece que por cada queda divina, mais a Humanidade se eleva, até ao derradeiro sacrifício. Com a cruz às costas, o Senhor Quase Morto vai dando vida nova àqueles que O olham. Até aos malfeitores e aos judeus que Lhe cospem é dada a hipótese de conversão. Cruz fiel e redentora, doce lenho, árvore da vida que é a razão da nossa loucura. Hoje levam-te em andores floridos, com as flores que nunca te adornaram antes até ao Calvário. Em cada passo, em cada estação da via-sacra, o joelho vai ao chão e ergue-se com dificuldade. O peso dos pecados é demasiado grande para que nos levantemos sozinhos sem custo.

Stat crux dum volvitur orbis” – a cruz permanece de pé enquanto o mundo dá voltas –, é o lema dos cartuxos. Quem me dera que ainda tivéssemos cartuxos, mas saíram todos do nosso Alentejo para outros sítios mais ermos. Como se fosse fácil algo menos povoado que a planície alentejana! Também eles, os menos prováveis de todos, foram dar voltas ao mundo enquanto a cruz da Cartuxa de Évora se mantinha no mesmo sítio. Assim parecem também as procissões, damos voltas e mais voltas, ladeiras acima e abaixo, um entra e sai de capelinhas e igrejas, e a única coisa imóvel são as cruzes dos campanários. Das procissões de há cem anos, já ninguém resta, estão todos mortos. Só o Senhor dos Passos é o mesmo. Talvez isso nos sirva de memento para focar no essencial. Santa Quaresma!

Artigo de Opinião publicado originalmente na edição impressa do jornal Linhas de Elvas nº 3712 de 16 de Março de 2023

Carregar mais artigos relacionados
Carregar mais artigos por Redacção
Carregar mais artigos em Destaque Principal

Veja também

Elvas: Feira escolar ao longo de quatro dias no jardim municipal

O Jardim Municipal de Elvas acolhe a partir de hoje e até domingo, a XXXI Feira Escolar do…