Na quinta-feira, 28 de Julho, Spirit de Crouz era um dos cavalos portugueses que se apresentava em Jullianges (França), com o propósito de se qualificar para o Campeonato do Mundo de Raides. Na garupa levava Leonor Moreira Alves e Almeida, a cavaleira alentejana que já tinha apurado outros três cavalos para a mesma prova, que vai decorrer em Itália no próximo mês de Outubro. Spirit e Leonor tinham pela frente 160 quilómetros e mais de 18 horas de competição para alcançar o objectivo traçado.

Só a dupla conhece o nível de esforço e a emoção sentidos durante a prova e no cruzar da meta. Mas é possível imaginar o relincho, o sopro e o resfolego do cavalo, o som do trote, a poeira que se levanta com o galope… Quem já viu a cavaleira em competição também lhe consegue adivinhar o porte elegante na montada, o foco, o pó na garganta terrincado, a corrente comunicativa das palavras de estímulo ao animal, o cuidado, o zelo e a protecção para que terminasse a corrida sem lesões…

Mesmo quem é leigo na matéria, observando sabe ver que Leonor Moreira Alves e Almeida tem um dom, um talento inato para a equitação e para lidar com os cavalos. Quem percebe do assunto e a segue de perto, enquanto progride de triunfo em trinfo, sabe muito mais. Sabe que a atleta atinge um grau notável de performance resultante de muito trabalho e dedicação, de uma vontade permanente de aprender e evoluir, do investimento quase diário na preparação física. E de uma desejo férreo de vencer. Os resultados estão à vista: Leonor brilha no céu estrelado do Endurance e não passa despercebida em nenhuma prova onde se apresente, seja em Portugal ou no estrangeiro. Também cativa pelo traço humilde. Quando estica o corpo cansado no final de cada conquista, remete invariavelmente o triunfo para a equipa que tem na retaguarda. No dia 28 Julho, após ter cruzado a meta em quarto lugar, e qualificado Spirit de Crouz para o Campeonato do Mundo, voltou a sublinhar “que uma equipa forte é a melhor forma de alcançar o sucesso”.

Crentes nas palavras da atleta, quisemos ir mais longe e saber ao detalhe como se constrói uma carreira de sucesso e como se lida com o insucesso quando se tropeça nele. Como se vencem distâncias competitivas de 160 quilómetros em cima de um cavalo? Qual é a sensação de chegar a número dois no ranking mundial, patamar que alcançou no passado mês de Maio? Quais são as metas competitivas que se propõe atingir? Onde e como começou tudo? Com a leveza com que monta, Leonor Moreira Alves e Almeida responde a todas as questões e ajuda-nos a contar uma história que não começa por: “Era uma vez…” Porque não é ficção, e não é passado. É bem real, e está a acontecer.

A vida de Leonor Moreira Alves e Almeida é feita de uma rotina plena de excitação, onde os dias que se sucedem não obedecem a um formato rígido e previsível. A cada manhã, quando se levanta, só tem uma certeza: vai andar num corrupio, de um lado para o outro, numa aritmética divisiva: o trabalho, a faculdade de Medicina Veterinária e o treino de crossfit. São três ramos de uma mesma árvore, que estão na origem dos patamares competitivos, cada vez mais altos, que está a alcançar. “Começo sempre por volta das seis e pouco, sete da manhã. Os meus dias e as semanas alteram-se muito. Dependem dos treinos que tenho em cima da mesa e acabo por fazer a gestão do tempo em função disso. Mas a regra principal é fazer os treinos mais exigentes para o cavalo, ou cavalos, que estou a preparar no momento. É claro que não é fácil, e às vezes acabo por ter que faltar a algumas aulas por causa do trabalho e da competição. No entanto, no meu dia-a-dia está sempre a faculdade. Estudar e fazer trabalhos ao fim do dia / noite. Tento montar três ou quatro vezes por semana e associado a isso faço treino de crossfit cinco a seis vezes por semana, para obter uma componente física que depois me faz muita falta nas provas. Como são provas de resistência, se estivermos bem treinados, quanto mais ajudarmos o cavalo, melhor é em termos de competição”.

A estratégia adoptada pela cavaleira tem vindo a revelar-se assertiva e está a levá-la ao cume da montanha competitiva. Em Maio posicionava-se no 2º lugar do ranking mundial de Endurance, atribuído pela Federação Equestre Internacional (FEI), a mais alta entidade do desporto equestre. Com os pés bem assentes na terra e sem embandeirar em arco, apesar de satisfeita por ter chegado tão longe, Leonor apressa-se a explicar que “a posição no ranking é uma coisa passageira, porque o que conta é a classificação obtida no final do ano, que é quando se analisam todos os meses que estão para trás”. Detalha que “são feitas actualizações mensais, baseadas no número de provas realizadas e das classificações obtidas, e em resultado disso é atribuída uma pontuação, daí em Maio eu ter alcançado o segundo lugar. Basta haver um mês com menos provas em Portugal, e nós também não temos muitos cavalos em competição, para que eu desça no ranking. Mas o meu objectivo é manter-me sempre no Top 10 até ao final do ano”.

A nível nacional, Leonor não larga o pódio. Apesar deste ano não ter ganho o campeonato, alcançou o segundo lugar, o que, segundo explica, a mantém “na primeira posição do ranking. Tenho acabado muitas provas em segundo lugar e isso coloca-me à frente”.

Como tudo começou

No imaginário dos seguidores de atletas de alta competição está quase sempre pintalgada a ideia do desportista ter começado por ser uma criança com laivos prodigiosos a dar, muito cedo, mostras de talento. Leonor Alves e Almeida não contraria esta presunção. Tinha pouco mais de dois anos quando a colocaram pela primeira vez em cima de um cavalo. O berço lunar da carreira fulgurante foi “uma feira”. Sem ter como recordar o momento, sabe contar a história. “Havia cavalos e alguém perguntou se eu queria montar e meteram-me em cima do cavalo. Quando tentavam tirar-me, chorava. Perceberam que havia uma ligação, porque eu mal falava na altura. Assim que tive tamanho para montar, com os meus quatro anos, comecei a ter aulas em Portalegre. Montava apenas 15 minutos por dia. Não me deixavam estar mais tempo porque diziam que poderia sofrer alterações da fisiologia do corpo, por ser tão nova. Não sei se será verdade ou não”. O que é certo é que muito pequena, e sem suspeitar, selava com um aperto de mão, na rédea do cavalo, uma carreira brilhante, que começava na dressage. “Só mais tarde, com o João Raposo, é que passei para o endurance”. A mudança trouxe-lhe os primeiros triunfos, resultantes de uma conexão especial com um cavalo. “Foi o Titanic, um dos cavalos que mais me marcou na minha vida. Foi com ele que fiquei em segundo lugar no Campeonato Nacional. Não recordo em que ano, porque já foi há bastante tempo, mas foi a partir daí que eu vi que era possível chegar a um pódio, e a coisa começou a brilhar de outra maneira cá dentro, a ter um peso diferente. Passei a ter um estímulo e uma vontade acrescida de progredir na modalidade”.

“O mais importante é ter a sorte de estar numa equipa onde todos trabalham para o mesmo objectivo”

Leonor explica que o endurance “é uma prova de resistência equestre” constituída por várias provas. “Começa-se com as ‘promoções’ um patamar iniciático destinado a cavalos e cavaleiros que nunca competiram. “Ou seja, a princípio corremos 40 quilómetros, depois 80. Posteriormente passa-se para a velocidade livre, em raides de 120 e 160 quilómetros, em que o objectivo é que o cavalo chegue ao final no mais curto espaço de tempo possível, respeitando os tempos de descanso que são obrigatórios. Os cavalos são sempre observados por um médico veterinário ao longo da prova, de acordo com o número de etapas. No final de cada uma delas são observados. Passam à etapa seguinte se estiverem em boas condições metabólicas e motoras”. Com a experiência e o palmarés que têm, a atleta corre “maioritariamente raides de 120 e 160 quilómetros. Mas também depende muito dos cavalos que temos. Tenho estado a correr também raides de promoção, porque temos que começar a meter cavalos novos, os poldros”.

A safra de resultados faz-se de muito trabalho e de um suor que inunda os dias. A atleta usa frequentemente a expressão “estou totalmente debaixo de água”, para ilustrar a absorção de tempo que a pratica da modalidade exige e todas as tarefas circundantes, onde também enraíza o sucesso. Estar a frequentar o quinto ano de medicina veterinária aporta–lhe conhecimento que usa na competição. Os treinos de crossfit dão-lhe uma preparação física para a dureza das provas. Tudo a ajuda e melhorar a performance. Não menos importante é o factor emocional: a forte conexão entre cavalo e cavaleira, e o tal dom inato. “Esse é um elemento muito importante”, salienta. “Passo muito tempo com os cavalos. Algumas provas são muito longas. Chegam a durar um dia inteiro, e acho que o mais importante é que quem corre com o cavalo o treine para o conhecer, porque há sinais que vão surgindo ao longo das corridas e se nós o conhecermos somos capazes de ajudar de maneira diferente. Como passamos muitas horas juntos, tanto a nível de treino como de provas em si, cria-se uma relação muito engraçada com os cavalos, até porque há viagens que são feitas para outros países e também se reforçam os laços nesses momentos”.

Todas estas argamassas constroem uma carreira que está à vista. Leonor soma vitórias, e ganha um lugar de destaque no panorama equestre nacional e internacional. Sempre que atinge um objectivo proposto, no momento de celebrar, dá um passo atrás para ir buscar toda a equipa que a acompanha no trabalho, quer no dia-a-dia, quer nas competições. Para ela são as dobradiças e as roldanas que sustentam e puxam pelo trabalho que realiza. “O mais importante é ter a sorte de estar numa equipa onde todos trabalham para o mesmo objectivo. Era impensável, com o dia-a-dia que eu tenho, conseguir atingir os resultados que tenho atingido”. O Paulo Branco é muito bom treinador e sabe ouvir o feedback dos riders. É ele que dá os treinos, mas somos nós que lá estamos todos os dias e sentimos os cavalos. Muitas vezes, quando eu não treino, estão os meus colegas. Todos remamos para o mesmo lado, para alcançar os objectivos definidos pelo colectivo, que são: competir, ganhar e ter os cavalos bem fisicamente. Este é o espírito do endurance, a união da equipa. Lembro-me de ser muito pequenina e de todos se ajudarem nas provas, porque eram competições difíceis e ainda não se sabia bem como treinar os cavalos para se atingirem as velocidades e as distâncias que se alcançam actualmente”.

A passagem pelo Dubai

Leonor Moreira Alves e Almeida tem no currículo uma passagem de quatro anos pelo Dubai. Uma experiência que a enriqueceu transversalmente e que contribuiu para a elevação do nível competitivo e performance. Recorda a oportunidade que lhe caiu nas mãos num momento crucial. “Na altura em que fui convidada a ir para o Dubai ainda não estava a tirar o curso de medicina veterinária, que foi o que sempre quis. Estava a fazer zootecnia em Évora. Ao mesmo tempo ia trabalhando na área da endurance. Como não estava muito satisfeita com o que estava a fazer em Portugal, decidi aproveitar, porque acho que é o sonho de qualquer rider passar por lá. É no Dubai que está o ouro das provas. É lá que se se compete a sério. As velocidades são outras. São muitos cavalos por prova. Tanto a experiência que se adquire em competição, como o trabalho que se desenvolve, são completamente diferentes. Os métodos de treino são outros, os médicos veterinários também são diferentes. Achei que era uma oportunidade que não podia perder, além de haver outro aspecto essencial, a parte económica que é bastante apelativa”. A atleta não nega que a fornalha amarela do deserto a catapultou para o nível em que está hoje. “Claro que sim. Montamos muitos mais cavalos do que aqui, o que desde logo ajuda bastante. Vive- -se muito mais o endurance, partilhamos muita informação, há mais treinadores que em Portugal, com as mesmas condições, e apresentam resultados diferentes. Acaba por se perceber um pouco mais de outros tipos de treino, o que resulta e o que não resulta. Foi sem dúvida uma mais-valia em termos de currículo desportivo”.

Ganhar e perder – como se lida com as duas faces de uma mesma moeda

A alta competição não é um jogo de cara ou coroa, mas é uma alavanca de sucessos e insucessos, de logros e de fracassos. É até um absurdo cómico para qualquer atleta pensar que consegue ganhar todas as provas, embora dispute cada uma delas com o ênfase da vitória. Leonor Alves e Almeida habituou-se a ganhar muitas vezes, corre sempre com esse objectivo, mas sabe de antemão que nem sempre acontece. A resistência equestre é uma modalidade dura, que exige muito do cavaleiro e do cavalo, que passa por avaliações médico-veterinárias rigorosas. A probabilidade de desclassificação paira sempre, ou de surgir qualquer outro obstáculo que inviabilize a vitória. Quando isso acontece, “é a pior sensação do mundo. Perder é uma tristeza absoluta, principalmente quando a pessoa mete na cabeça que é possível ganhar”. Quando não alcança a vitória Leonor pensa de novo na equipa. “Trabalhamos tanto, todos os dias, que é uma frustração imensa não atingir os objectivos a que nos propusemos. Mas acontece, não é? Claro que quando a vitória de um colega é legítima, como foi o caso do campeonato nacional, não custa tanto, mas é sempre doloroso, porque estivemos um ano inteiro a trabalhar duro, e quando a coisa não corre como nós desejamos é tramado. Obviamente que se chegarmos ao fim e o cavalo com que estivermos a competir, mesmo que não ganhe, se estiver bem, para mim é o mais importante. Saber que não lhe causei nenhuma lesão e que vai continuar a sua carreira desportiva”.

Quando tudo corre bem, como é? “É difícil explicar, mas acima de tudo é muito gratificante para mim e para todos os que estão nas minhas costas e que se empenharam comigo. É ter a tranquilidade de não os ter desiludido. Obviamente é uma felicidade enorme, principalmente quando se trata de um campeonato nacional, ou mesmo uma prova internacional. É muito reconfortante”.

A próxima prova de fogo que Leonor espera vir a enfrentar é o Campeonato do Mundo que irá realizar-se em Itália em Outubro. A par de Spirit de Crouz, a atleta classificou outros três cavalos para a prova. À partida irá competir, mas a decisão “depende do selecionador. Normalmente a presença do campeão nacional está sempre garantida, mas como tenho quatro cavalos apurados, acho que isso aumenta as possibilidades de eu também ser chamada”. Até lá vai continuar a realizar provas, e a somar pontos, para alcançar o objectivo de se manter no Top 10 do ranking mundial. São muitas as horas de treino e as que soma nas provas. Não sabe ao certo quantos quilómetros faz por ano montada num cavalo. “Depende muito. Este ano não sei. O ano passado acabei por competir muito, tínhamos muitos cavalos para classificar, e corremos uma média de duas provas por mês. Entre as realizadas em Portugal e no estrangeiro, e os treinos semanais, se calhar faço mais horas a cavalo que de carro”, diz entre risos, para de seguida confidenciar o objectivo que persegue mais de perto. “Gostava muito, muito, de fazer um bom resultado no Campeonato do Mundo. Um Top 5 para mim já era gratificante. Se for com o Tejo então… melhor ainda”.

Falta pouco mais de dois meses para sabermos como será.

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