O tapete estendido à beira-mar outrora deserto de viajantes está por estes dias com lotação máxima e parece que já nem a réstia do bicho assusta a gente. Há umas semanas saudava a praia porque eu acordava cedo e ela também. Mas agora, coitada, já nem se deita com a loucura que tem sido a toda a hora com gentes de todo o mundo que tentam arrancar o seu segredo e que a obrigam a enrolar a água na areia sem parar.
As velhas voltaram-se a juntar sem os maridos que ficaram em casa a ler o jornal. Fazem agora um balanço geral do que tem sido esta quarentena e como tem afetado a família de cada uma delas. Parece que, apesar de tudo, os netos dos santos filhos estão cada vez melhores em todas as coisas que fazem. As notas da escola vão subindo em jogo de batata quente à volta da roda que desenharam sem querer no paredão e o jogo acaba quando se fica a saber que a filha de uma delas trabalhou um dia inteirinho por teletrabalho sem comer e dormir.
No paredão andam agora todos os cães soltos, como gostariam provavelmente de andar os donos. São maioritariamente italianos, romenos e ingleses com escaldões desproporcionais à altura e com animais de raça cujo pêlo tem de ser cortado algumas vezes por ano.
Vão agora as pessoas a dois e dois, como se a altura de passear sozinho já lá fosse, mas o calor de uma conversa a cinco parecesse descabida e irresponsável. Contam-se autênticas tragédias gregas familiares que se possam ter passado durante estas semanas, como têm saudades de o marido não estar nunca em casa e como os putos funcionam mesmo a pilhas.
O paredão deixou de ser um sítio de fugir, de pensar ou de descanso e passa agora a carregar frustrações das vidas confinadas, sonhos de criança e atividade física em jejum. Os pescadores desistiram e foram para casa quando perceberam que se tratava mais de falar sobre as coisas mundanas ao invés de sentir as coisas mundanas. Sinto-me possessiva em relação ao meu paredão e com ciúmes que me o levem assim para que, pelo menos até outubro, não o tenha de volta na condição em que o encontrei quando tudo isto começou. Bem sei que cumpre o seu propósito: ser palco a qualquer um que o visita. Mas, meu deus, eu estive lá com o teatro vazio e o eco da sala enchia-me o peito.
Uma criança passa por mim e, envergonhada, sorri com a pequenina mão na boca. Percebo instantes depois que certamente me mostra vaidosa o fato de banho rosa com o folho na barriga. Desfila até à praia com os caracóis negros num coque alto. Talvez hoje tenha acordado decidida a ser bailarina e eu tivesse sido o primeiro público que com um “uau” sem som e demasiada expressividade no rosto tenha aplaudido a atuação.
Já quase perdida a esperança de qualquer tipo de reconhecimento naquela calçada, passa por mim o meu pescador de bicicleta. Diz sem parar de pedalar e a olhar para trás:
– Já sabia que eras tu… estás sempre mal vestida para a estação.
Sorri-lhe verdadeiramente. Não lhe disse mais nada, nem ele a mim. Avançou impiedoso, a rasgar o cheiro a início de verão que está agora no nosso paredão e que, considero, também não lhe agrada. Antes de ir, solta-me um piscar de olhos. Diz-me nesse instante que aquele espaço continua de quem acorda cedo só para ver o mar, que somos companheiros de uma batalha pouco vencida. Assegura-me que, se houver mesmo uma Terceira Guerra Mundial como me prometeu, hei-de ser eu mal agasalhada e ele a meio de um cigarro batalhando contra os netos dos filhos e os poodles dos franceses.
Catarina Cambóias
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