Cresci numa pequena quinta nos arredores de Elvas que o original proprietário João José de Alcântara, primeiro visconde e conde de Alcântara, construiu na zona das Fontaínhas. Tendo passado a casa para o seu neto Júlio de Alcântara Botelho – esse fidalgo republicano que sempre se negou a puxar pelos galões genealógicos do seu avô materno e que foi o primeiro elvense a hastear a bandeira verde e rubra na sede municipal –, pretendeu fazer do seu primo direito Manuel Vicente de Abreu herdeiro universal, uma vez que não tinha descendência. Como o meu trisavô recusasse terminantemente a oferta, do vasto património do primo só a muito custo e insistência aceitou essa Vivenda Alcântara como memorial duma grande amizade (tudo o mais, como é sabido, foi legado para obras de caridade).
Depois de muitos anos como sede da fábrica de borrachas Inexca, acabou a minha família por ir viver para essa quinta defronte da Estação de Caminhos de Ferro, o que grande alegria trouxe ao meu pai, que assim lhe permitia finalmente poder ter cavalos (a sua grande paixão) em casa. Mas se esta localização privilegiada me deixava ter liberdade para brincar à vontade no campo e entre animais, quando comecei a crescer já só via inconvenientes na descentralização da minha casa. Enquanto todos os meus amigos viviam ou na cidade ou no bairro de Santa Luzia, já eu não tinha a sorte de poder abrir a porta e estar com eles quando queria.
Tudo implicava uma viagem de carro para cima e outra para baixo, e com pais que trabalhavam todo o dia não era fácil ter esses momentos de brincadeira sempre que eu queria. Agora vendo em retrospectiva, penso que terá sido essa uma das razões que me levou a construir um carácter mais isolado e por vezes egoísta, encontrando principalmente na leitura um refúgio precoce para combater a minha solidão.
Entrado definitivamente na adolescência, muito mais eu sofria pelas saídas à noite, porque aí das duas uma: ou dormia em casa de um amigo ou voltava sozinho para casa. E tantas vezes voltei sozinho – a pé ou de bicicleta – que mesmo não vivendo na cidade todas as suas pedras se me tornaram familiares. Nessas noites eu era o dono de Elvas e as muralhas e a escuridão as minhas únicas companheiras. Umas vezes saía das discotecas do Club de Tiro, passava pelo Estádio de Atletismo e descia a Fonte de Gil Vaz até casa. Outras vezes voltava pelas Portas de São Pedro até à Boa-Fé. Mas o caminho mais custoso pela sua monotonia, e o que acabava por mais vezes fazer pelo São Mateus, era do Aqueduto da Amoreira à Rua do Matadouro. Até de Varche vim eu uma vez, apesar de já não me lembrar se alguma sola restou nos sapatos depois dessa odisseia…
No entanto, independentemente de qual dos percursos fizesse, a vista que nunca desaparecia de olho era a da cidade. “Protege-nos Senhor como à menina dos olhos”, reza o nosso brasão elvense, e eu confesso ter-me sempre sentido protegido com a simples fitada da colina muralhada na minha direcção. Fosse por um caminho ou por outro, lá estava essa “ruga nobre na fronteira” – nas palavras de António Sardinha – sempre imóvel e atenta aos meus passos e tropeções. Ela imóvel, mas eu, que necessariamente a tinha de contornar, pude apreciar durante muito tempo todos os seus perfis. E como a perspectiva sobre um corpo influencia sempre a maneira como o vemos e conhecemos, também a perspectiva que cada um tem sobre a cidade influi na sua concepção.
Quem vive dentro da cidade conhece-lhe as ruas certamente melhor que ninguém, mas não as suas formas. Só quem a vê de fora, quem contorna as muralhas com o olhar, pode apreciar a beleza do todo, do conjunto. Claro que todas essas vistas, mesmo as de fora, são parciais e por isso enganadoras. Assim quem vê a cidade desde a Avenida da Piedade nunca se aperceberá da sua real dimensão e quem a vê do Rossio de São Francisco julgá-la-á quase sem igrejas. Quem a vê do Forte de Santa Luzia acha-a talvez demasiado ocre ou predominantemente gótica (e quem olhar de S. Domingos para fora achará que o responsável por permitir a construção de um mono disforme azul cerúlea em frente ao Forte deveria ser interditado num asilo, mas isso é outra história). Quem a vê do Bairro da Boa-Fé assustar-se-á com a sua altivez mas terá muito maior percepção da realidade pela quantidade de pormenores que consegue identificar, o que aliás não deixa de ser curioso num bairro historicamente operário, cuja classe (se é que ainda existem classes operárias) sempre reteve muito melhor as características e comportamentos dos seus patrões do que os próprios.
Mas se essa fosse uma visão operária, então a que tinha desde minha casa seria uma visão fabril, quase indigente, porque só muito ao longe vislumbrava uma lateral da cortina de muralhas, inalcançável, idílica, mas que tanto eu ambicionava.
Ó necessária distância! Não fosse por isso, talvez nunca me apaixonasse por Elvas!
Tiago Picão Abreu
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